
Minha m�e era uma mulher s�bia – e por causa disso n�o tinha medo de nada. Seu maior prazer era a leitura, passou a vida com um livro na m�o, quando n�o cuidada dos filhos. Apesar de ter feito apenas o primeiro grau, no grupo escolar de Santa Luzia, tinha mais conhecimento da vida e da cultura do que muitos e muitos que passaram por universidades. Quando envelheceu e n�o teve mais que criar filhos – botou 9 no mundo, um deles faleceu ainda com 2 anos – seu prazer era escrever (lan�ou um livro de casos sobre cidade em que nasceu) e pintar quadros que vendia muito bem, acredite quem quiser. Tempos depois que morreu, encontrei um caderno de anota��es que ela fez numa viagem sobre Portugal e It�lia, nem podia imaginar que reparasse tanto em tantas coisas. Escrevia � noite, no hotel, depois que �amos dormir.
Como gostava de escrever, gostava tamb�m de prever – e muito tempo antes de morrer deixou bem desenhado e explicado o que queria que fosse feita em sua sepultura. No tampo de m�rmore, apenas dois copos de leite com os caules cruzados sobre uma cruz. Est� enterrada l� com meu pai, que morreu quando eu tinha apenas 2 anos, n�o me lembro nada dele. Minha irm� mais velha tamb�m est� l�, mas s� as cinzas, porque quis ser cremada. Assim como meu irm�o, que morreu no Sul, onde sempre morou e provocou um desastre com minha sobrinha. Como cuidou da constru��o daquela ponte que liga o Brasil ao Paraguai – conhecida como Ponte da Amizade, queria que suas cinzas fossem jogadas l�. Minha sobrinha foi com a caixinha e primeiro teve que enfrentar uma forte investiga��o, os guardas da fronteira acreditavam que podia ser droga. Conseguiu provar que n�o era e foi jogar as cinzas do pai no rio. S� que n�o previu a ventania e quando virou a caixa, as cinzas voltaram todas sobre ela.
Meu caso foi mais f�cil: usei sugest�o de meu amigo, senador Antonio Anastasia , e usei os canteiros do meu jardim para guardar para sempre as cinzas de meu marido. Ele adorava ficar horas e mais horas perdidas, admirando as flores, o verde, os p�ssaros. No meu caso – que tamb�m quero ser cremada –, n�o escolhi ainda onde quero que minhas cinzas sejam jogadas. Mas, no dia de hoje, sigo os preceitos do amor e do respeito p�stumo. Vou todos os anos a Santa Luzia levando flores para o t�mulo da minha m�e. E para as cinzas sempre lembradas que est�o em meu jardim, costumo colocar velas acesas.
A escolha da crema��o tem aumentado muito nos �ltimos tempos. Mas deixa sempre um problema, sobre a destina��o das cinzas, que n�o s�o poucas. Conhe�o caso de mulheres apaixonadas que conservam as cinzas do marido em caixas de prata, em um dos ambientes da casa. Parece um pouco de morbidez. E um dos casos mais interessantes � um contado nas mem�rias de Carlos Drummond de Andrade, em que as cinzas de um conhecido foram colocadas na dispensa da casa e, inadvertidamente, por desconhecimento, usada pela cozinheira da fam�lia como tempero. Quando descobriram, amigos e familiares j� tinham consumido as cinzas do saudoso morto. O que, na verdade, n�o deixa de ser uma solu��o.
