Todo mundo tem um her�i dentro de si

Quase seis meses sem aulas presenciais, evitando sair de casa, evitando aglomera��es, usando m�scara, tomando banho de �lcool em gel, falando com a fam�lia e os amigos por v�deo. Poderia ter sido pior, h� 20 anos n�o ter�amos tantos recursos tecnol�gicos dispon�veis.

Sigo me dividindo entre os cuidados com a fam�lia, a casa, os textos. Comecei um livro novo. Inventei receitas de bolo (vai que eu preciso mandar uma receita para substituir um texto vetado por algum �rg�o de censura, nunca se sabe o que esperar de 2020).

Sempre achei que minha fam�lia fosse progressista, a escolha por ter um filho s�, a educa��o antirracista, feminista, que acredita que amor � amor, que acredita na ci�ncia. Em agosto, nos deparamos com uma hist�ria t�o surreal que nem novela mexicana seria capaz de ter uma trama daquelas.

A superm�e que tem mais de 50 filhos, que se casa com o filho adotivo, que diz que homossexualidade � uma aberra��o, e que faz swing e coisas bem mais esdr�xulas. 2020 me deixou careta, afinal, sou monog�mica, embora n�o  condene quem faz swing. Ensino meu filho que incesto � errado, mas que amar algu�m do mesmo sexo n�o �. Me sinto na contram�o de tudo.

E nessa onda de pol�micas, acabei entrando na do Felipe Neto, aquele que passou a ser visto na minha casa por causa dos v�deos de Minecraft. Meu filho tem 11 anos e, al�m de ler muito e passar as tardes fazendo aula on-line, joga Minecraft, na verdade programa mais que joga, ele adora o Creators.

Me vi tendo que entender o que � “dropar”, o que � um “creeper”, � preciso tentar falar a linguagem dos filhos quando eles entram na adolesc�ncia, ou perdemos a conex�o. Fui julgada, censurada e condenada por comentar que aqui Felipe Neto n�o � proibido.

O que n�o significa que o acesso seja irrestrito e sem supervis�o. Quem sabe o que � ter uma crian�a at�pica dentro de casa que atire a primeira pedra.

Depois disso, precisei de uma dose extra de coragem para voltar a encarar o hospital em tempos de pandemia. Retirei um c�ncer de mama em junho de 2019 e fa�o controle com a oncologista a cada tr�s meses, e a cada seis meses com a mastologista. Adiei consultas e exames que deveria ter feito em maio, o hospital nem estava realizando exames naquela �poca, s� os de urg�ncia.

Os meus exames podiam esperar. Cancelei a consulta oncol�gica de junho. Marquei tudo para agosto. Sa� do isolamento quatro vezes para ir ao hospital, tive retorno com a mastologista, com a oncologista e fiz raio-x do t�rax, ultrassom abdominal, ultrassom das mamas e ultrassom do pesco�o.

O �ltimo para verificar um calinho que eu achei bem em cima do osso da saboneteira. Eu conhe�o meu corpo como a palma das m�os. Tudo que aparece de diferente eu noto, foi assim que descobri o c�ncer de mama. O carocinho do pesco�o podia ser um linfonodo, mas era s� um lipoma.

E enquanto eu fazia meus exames de controle, o mundo perdia Chadwick Boseman na luta contra um c�ncer de c�lon, aos 43 anos. � assustador pensar num her�i perdendo essa luta. Justamente por causa de hist�rias como a dele, o protocolo para a colonoscopia mudou, a primeira colonoscopia, para quem n�o tem sintoma nenhum, nem hist�rico de nada, deve ser feita aos 45 anos, n�o mais aos 50, como era at� pouco tempo.

Foi o �nico dos exames que me foram pedidos que ainda n�o fiz, mas j� vou marcar. Se voc� j� passou dos 45 e ainda n�o fez, n�o perca tempo! Quanto mais cedo a gente descobre, maiores s�o as chances de cura.

O ator Chadwick Boseman, mundialmente conhecido pelo papel do Pantera Negra, partiu ap�s quatro anos de luta contra o c�ncer, o legado dele ficou. A representatividade ficou. Tenho certeza de que ele viveu esse tempo tentando n�o deixar nada para depois.

Acho que � assim que funciona quando nos tornamos pacientes oncol�gicos. Descobrimos que n�o temos tempo a perder e vamos fazendo o que nosso cora��o deseja, como se n�o houvesse amanh�. Todo mundo tem um her�i dentro de si.