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Estado de Minas CORA��O DE M�E

Como uma m�sica de James Taylor me fez esquecer que passei dos 60 anos

De repente, esqueci os fantasmas e pensamentos complicados, que v�o e voltam batendo nas quinas do meu ser


postado em 15/09/2019 04:00 / atualizado em 15/09/2019 08:31


  
De repente, me vi com 23 anos ao ouvir James Taylor cantando You’ve got a friend. Enviado por um amigo hist�rico, daqueles cuja amizade est� ficando t�o velha quanto n�s dois, o v�deo me fez esquecer que tenho 66 anos. Como nos filmes das d�cadas de 1970, entrei na m�quina do tempo ao ouvir James Taylor cantando “voc� tem um amigo para iluminar at� suas noites mais sombrias. Apenas chame meu nome e eu irei correndo”.


 
De repente, esqueci que passei dos 60 anos. Me senti livre, sem amarras, sem obriga��es, sem contas a pagar, sem cr�dito ou d�bito com a vida, sem juros nem corre��o monet�ria. Eu podia andar pelas ruas sem len�o e sem documento at� chegar ao Saloon, o meu “Bar Don Juan”, para encontrar esse amigo e tomar Campari com �gua t�nica. A bebida vermelha borbulhava dentro de mim, e ent�o eu sonhava com o fim da ditadura que mostrava suas garras. Mergulhava em copos de menta e de bloodmary, o coquetel de vodca com suco de tomate, uma forma instant�nea de chegar ao para�so.

A m�sica de James Taylor me resgatou no tempo em que o inimigo era um s� – o regime militar, com suas artimanhas de AI-5, censura e escurid�o nos por�es da tortura. Sem empunhar armas, sem subir o Araguaia para fazer guerrilha, a gente conversava e conversava e sonhava. De repente, a utopia dos anos 1970, palavra m�gica e poderosa para acabar com os desmandos. Palavra esquecida no dicion�rio contempor�neo, sob amea�a constante de outras ditaduras, arb�trios e descalabros.
De repente, esqueci os fantasmas e pensamentos complicados, que v�o e voltam batendo nas quinas do meu ser.
 
James Taylor me levou para outro tempo. Acabara de me formar em jornalismo na UFMG, em plena ditadura mi- litar. Meus sonhos estavam todos intocados. Tamb�m ouvia Beatles, mas amava muito mais os Rolling Stones. Curtia Chico Buarque cantando “quem � essa mulher que canta sempre esse estribilho? S� queria embalar meu filho, que mora na escurid�o do mar”, em refer�ncia a Zuzu Angel, m�e de Stuart Angel, que depois de ser preso e torturado jogaram o corpo dele no mar, sem deixar pistas. Sem culpa nenhuma diante daquela m�e torturada pelo desaparecimento do filho.

De repente, esqueci as marcas que o tempo foi fincando em cada parte do meu corpo, dos olhos que j� n�o enxergam mais t�o bem. Fui correndo consultar o Almaque dos anos 70 – presente de B�rbara, filha de Bety Huebra, outra amiga hist�rica – e de autoria de Ana Maria Bahiana, com letras min�sculas, dif�ceis de ler para quem est� envelhecendo.
 
A m�sica de James Taylor lembrou-me de que quase j� n�o tenho mais amigos homens como antes, que fui selecionando at� as amigas, que hoje s�o poucas, mas fi�is.
 
Corri para a casa dessa amiga hist�rica, que insiste em fazer parte da minha vida e eu da dela. Ela morava a poucos quarteir�es da minha casa. E lembrei-me de que sem computador, sem WhatsApp, sem tablet ou celular, a gente se correspondia por bilhetes. Um caderno era o s�mbolo da amizade. Eu escrevia e ela respondia no mesmo caderno, repleto de festas, namoros, projetos e desejos. Duas das irm�s dessa amiga estavam presas por integrar o movimento contra as for�as militares e, muitas vezes, assisti aos policiais invadindo o apartamento da fam�lia dela para vasculhar livros, derrubar estantes, abrir gavetas � ca�a de alguma pista que pudesse compromet�-las. Hoje, essa amiga � m�e da m�e dela, que acaba de completar 94 anos.
 
A m�sica You’ve got a friend me levou aos inconfund�veis anos 1970, resgatou minhas emo��es. “Tudo o que voc� tem a fazer � me chamar e eu virei correndo para te encontrar novamente”, eu repetia a frase da m�sica uma, duas, 20 vezes.
 
A guerra era outra. Com 23 anos, achava que iria mudar o mundo com minhas reportagens sobre as mulheres. Sentei nas escadarias da Igreja S�o Jos� para protestar contra o assassinato da socialite mineira �ngela Diniz por Doca Sreet, em B�zios, no Rio. “Quem ama n�o mata”, era o grito de protesto e dos cartazes da �poca. Movimento reeditado agora por velhas guerreiras contra o feminic�dio, ou melhor, a ca�a �s mulheres.
 
Fui para a rua muitas vezes assinar o manifesto de um professor que pedia o fim da ditadura e depois foi preso, trocado por um embaixador e que nunca mais deu not�cias nem mandou lembran�as.
Lembrei-me de Rita Lee, com os Mutantes, numa banheira de espuma. A m�sica me despertou, mas tive que voltar � dura realidade de que meus �dolos tamb�m est�o com os cabelos brancos. Muitos j� passaram dos 70, mas continuam trabalhando, compondo, cantando e dan�ando, para mostrar que essa gera��o aguenta o tranco, pois foi capaz de mudar comportamentos e agora prop�e a revolu��o da velhice. Quer viver mais e ativamente. Afinal, foi a nossa gera��o que disse um basta � mesmice, ao anteontem das coisas.
 
James Taylor me acordou para um tempo de acampamentos organizados e selvagens, de natureza, de festas com luz negra para iluminar os t�nis brancos, que n�o podiam ser lavados. Obrigada, James Taylor, por me lembrar dos incr�veis anos 1970, quando o p�ster de Che Guevara enfeitava a parede do meu quarto e provocava revolu��o no meu ser inquieto e rebelde, qualidades intoc�veis da juventude.
 
Obrigada, amigo, por sacudir os meus 66 anos e lembrar que ainda d� tempo de “chamar alto o seu nome, quando aquele antigo vento norte come�ar a soprar”, como embala a m�sica de James Taylor – tamb�m j� revelando rugas e cabelos brancos. Ainda d� tempo de saber que tenho um amigo para tomar vinho, comer sushis, sashimis e, quem sabe, lembrar dos tempos da macrobi�tica, que a nossa gera��o inaugurou com maestria. Assim como tomar banho de cachoeira e fazer sexo fora do casamento. Uma gera��o que virou tudo de pernas para o ar, que protestou contra a guerra do Vietn�, que instaurou a contracultura.
 
Ainda d� tempo de reeditar as boas lembran�as, mas principalmente viver novos e saborosos momentos. Ainda d� tempo. Afinal, � preciso caminhar pra frente, mas que � bom lembrar, ah, isso �. “Lembrar se for preciso, esquecer jamais”, s� para citar um velho slogan contra a ditadura militar – est� na hora exata de relembrar a escurid�o que se fez sobre o pa�s.

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