
Nossos cora��es voltaram a bater em sintonia 10 anos depois de tudo. Uma reportagem da BBC News Brasil me transportou de novo at� Sonia Imanishi, de 59 anos, e Geraldo Faraci, de 64, pais de Yumi. A jovem de 18 anos que foi soterrada junto com mais dois colegas do curso de arquitetura naquele r�veillon de 2010 para 2011, em Angra dos Reis, Rio de Janeiro.
S�nia sempre me surpreende. Aprendo que a dor de perder a �nica filha d� asas �s boas lembran�as e desejos de Yumi. Menos de 15 dias depois da morte dela, S�nia e Geraldo jogaram parte das cinzas dela no mirante Topo do Mundo, na Serra da Moeda, em Minas Gerais. No fim daquele janeiro de 2010, fizeram uma bonita cerim�nia em Angra dos Reis. Junto com amigos da filha mergulharam para jogar mais uma parte das cinzas dela no mar.
Ao longo dos anos, ela e o marido recome�aram. Decidiram que fariam o que amavam. Largaram o turismo, porque o trabalho na pousada era uma loucura e eles n�o queriam mais. A forma��o de S�nia � em artes e voltou a trabalhar como artes�. Geraldo que ama cozinhar, se tornou sushiman.
Antes de falar sobre a decis�o do casal de voltar a viajar para jogar as cinzas da filha nos mais belos lugares do mundo, preciso dizer que conheci S�nia Imanishi h� seis anos, quando ela me contou que a cura de uma dor que n�o tem nome veio atrav�s do barro. O mesmo barro que deixou cicatrizes profundas na alma dela. Entre ser v�tima ou sobrevivente, essa m�e escolheu a �ltima. N�o partiu para o caminho de v�tima nem de tentar culpar algu�m por uma trag�dia que poderia ter arruinado a sua vida por completo.
Os pais de Yumi eram donos da Pousada Sankay, na Enseada do Bananal, Ilha Grande, um lugar paradis�aco que escolheram para ter qualidade de vida e criar a filha junto � natureza. At� que o pesadelo veio na virada do ano de 2010, �s quatro da manh�, depois das comemora��es de ano-novo.
At� hoje, Sonia se belisca para saber se n�o est� dormindo. Como se tivessem tirado o seu ch�o – e ela continuasse a flutuar sem bordas para segurar. Imagine perder ao mesmo tempo casa, trabalho e a �nica filha.
Conhecer S�nia Imanish � um presente para qualquer m�e. Com a simplicidade zen de seus antepassados, ela teve que refazer a vida, restaurando tudo, com paci�ncia, aceita��o e a for�a dos guerreiros samurais. S�nia � carioca, nasceu no Rio de Janeiro, mas � filha de pais japoneses que vieram para o Brasil no fim dos anos 1950. At� os 10 morou no Rio, onde os pais trabalhavam em uma ind�stria japonesa, depois vieram para Minas. Ela se confessa carioca, mineira e japonesa.
Desde 2012, o casal mora em um condom�nio fechado em Brumadinho, Regi�o Metropolitana de BH, onde est� o ateli� de S�nia e o jardim em homenagem � filha, onde os girass�is est�o sempre virados para a luz a lembrar da passagem r�pida e ensolarada de Yumi entre n�s. A casa tem todos os caquinhos da pousada, fica no meio do mato, embaixo do Topo do mundo, onde os pais jogaram parte das cinzas da filha que, por incr�vel que pare�a, j� havia expressado o desejo de ser cremada.
Foi justamente a urna com as cinzas de Yumi que fizeram de S�nia uma ceramista reconhecida. A ideia era aprender a fazer o mais belo pote em cer�mica para colocar as cinzas da filha. O antigo pote de porcelana nunca fora do agrado de S�nia, at� que descobriu uma vizinha famosa, a ceramista Erli Fantini, com o seu gigantesco forno a lenha para queima do barro. Ficou apaixonada com o fogo, o barro e as pessoas em volta da queima. Descobriu que “o barro tem alma”.
Com o barro que soterrou os seus sonhos, ela reencontrou a filha. Cada pe�a de S�nia � dedicada a Yumi, pois as duas amavam arte. Viajavam, visitavam museus, pintavam juntas, seja em paredes, desenhos na pousada, na decora��o e at� nos barcos.
Na casa de S�nia em Minas, as lembran�as da filha est�o por toda a parte. Afinal em sua mete�rica passagem pela Terra, Yumi falava cinco idiomas, tocava viol�o, teclado, compunha e reunia t�tulos como o de ser a segunda mulher a conquistar a faixa preta na arte marcial kobu-d�.
Se ela sente saudade de Yumi? Todos os dias. S�nia tem marcada na pele duas tatuagens em homenagem � filha: uma com o formato do viol�o dela, na perna direita, e outra com o nome dela, nas costas. O pai tatuou o rosto dela nas costas. Mas S�nia transformou a dor em arte. Pegou o barro que lhe tomou tudo e o transmutou em beleza. Hoje, ela respira a arte da cer�mica. Acorda �s quatro da manh� para moldar o barro com a dor de perder, mas a felicidade de ter convivido com essa esp�cie de anjo que s� esteve aqui para alegrar as pessoas � sua volta. Enquanto trabalha no barro, S�nia recita uma esp�cie de mantra: “Farei dos meus olhos os seus olhos e dos seus olhos os meus”.
A hist�ria continua a cada passagem de ano. S�nia e Geraldo combinaram que estar pr�ximo de Yumi � continuar viajando. “E a cada lugar bonito que represente algo para n�s, vamos jogar parte das cinzas dela. Faremos isso aos poucos, at� acabar. Quando eu e Geraldo partirmos, um parente ou amigo se encarregar� de jogar os nossos restos em algum lugar tamb�m.”
Pois n�o � que em 31 de dezembro de 2019, eles lan�aram as cinzas da filha no Parque Nacional Los Glaciares, em El Calafate, na Argentina. “Est�vamos em um catamar� e pedimos autoriza��o para o comandante. Ele disse que abriria exce��o e permitiu que a gente fosse para um cantinho da embarca��o, perto a um pared�o de gelo muito bonito, e lan�amos as cinzas. Rezamos um Pai Nosso depois. Foi um momento lindo.”
Nos dias que se seguiram, eles lan�aram as cinzas no Ushuaia, na Argentina, e em Torres Del Paine, no Chile. Eram lugares que eles queriam conhecer com Yumi.
Pretendem continuar a cada ano novo. J� escolherem o pr�ximo lugar. V�o jogar as cinzas da filha na regi�o de A�ores, em Portugal, pois um amigo da fam�lia, que conheceu Yumi desde pequena, estar� velejando por l�.
S�nia e Geraldo fazem um juramento: “Que possamos te levar at� que o �ltimo de n�s dois se v�. Que possamos realizar todas as viagens que um dia quis�ramos fazer, para que possamos sempre guardar em nossas mem�rias o tamanho do nosso amor. E para que um dia, quando n�s tr�s nos reencontrarmos, tenhamos muitas coisas para contar. At� a pr�xima viagem, Yumi”.