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Estado de Minas CORA��O DE M�E

As flores que crescem no asfalto

Eles plantam sementes de esperan�a. S�o jardineiros de uma nova cidade. Transformam indigna��o em a��es


05/07/2020 04:00 - atualizado 04/07/2020 12:22




Preciso contar para voc�s por que nas �ltimas cr�nicas escrevo sobre pessoas em situa��o de rua – e de como estou vivendo a quarentena depois da chegada da COVID-19. Preciso contar que estou ajudando a plantar flores na dureza do asfalto.

Preciso contar que estava contaminada pelo v�rus da indiferen�a, da intoler�ncia, do descaso neste pa�s chamado Brasil. Estava contaminada pelas desigualdades sociais, pela injusti�a, por escrever com o sangue da minha dor: “Aqui tudo bem, s� que estou sangrando”, me ensinou o escritor e jornalista Roberto Drummond, meu compadre e mestre na arte do jornalismo liter�rio.

Em um tempo do “disse que”, “segundo fulano”, “de acordo com sicrano”, de um texto morno, arroz com feij�o, de regras r�gidas do jornalismo, ele me ensinou que rep�rter n�o � um rob� que reproduz a fala do entrevistado entre aspas.

Tem que chegar at� o entrevistado, conferir se os gestos correspondem �s palavras, se os olhos falam. Conferir o clima, o jeito de vestir, de se portar. Tem que desnudar a alma do entrevistado. Tem que colocar molho no texto, temperos da criatividade no arroz com feij�o de todo o dia. Seduzir, emocionar o leitor para que ele tenha vontade de ler, de prosseguir. Tem que gastar sola do sapato, andar pela cidade. Ser um rep�rter antirrob�.

Lutei muito como mulher e m�e. Como ser humano guerreei, como pessoa sonhei, como rep�rter tentei seguir o estilo do mestre, mas fiquei a ver navios por ser mulher, ter lutado e guerreado, ter sonhado e imaginado um mundo menos insano para todos.

Com indigna��o e dor cheguei � exaust�o, ao fim das minhas for�as que n�o incluem r�tulos, um mundo arrumadinho demais para as minhas incertezas. Estava farta, perdida nas minhas cren�as que n�o est�o enquadradas, engessadas ou fossilizadas. Lutei para mudar o mundo com a escrita.

Estava � m�ngua. Vivendo um dia de cada vez, mas sem me conformar com o sistema de lucro e de bens materiais, de consumismo sem fim, onde apenas uma pequena parcela tem garantia e direito de viver.

Estava exausta. Considerada ovelha negra da fam�lia, fui estigmatizada por v�rias vezes. Alguma semelhan�a com os moradores de rua? Sim, algumas, porque ainda tenho amigos fi�is. Moro de aluguel at� hoje – mas penso at� quando, com o pre�o dos alugu�is nas alturas. Pago caro por ser quem sou. Por ter dedicado boa parte da minha carreira profissional �s quest�es sociais, ao of�cio de quebrar regras.

Preciso contar que nunca me preocupei com dinheiro, que hoje me faz falta porque nesse sistema econ�mico vil, que compra e vende at� os sonhos, que barganha e banaliza a vida, que n�o d� tr�gua �s coisas do cora��o, ao olhar diferenciado, � ang�stia de existir, de ser mulher e de ter passado dos 60 anos.

N�o h� chance para quem n�o conseguiu poupar, guardar dinheiro, ter uma casa para morar, um carro para desfilar. N�o h� chance para m�es liberais, amigas do filho, que evitam li��es e limites torturantes, solu��es f�ceis, castigos. Para quem joga o diferente na ilus�o dos rem�dios psiqui�tricos, que transformam seres humanos em zumbis. Voc� pode ser chamada de relapsa, de omissa, de viver um relacionamento simbi�tico, neur�tico e obsessivo com o filho.

O tempo passou e chegou o coronav�rus, para roubar ainda mais o que restou de melhor em mim. At� que minha amiga e jornalista Beatriz Lima me apresentou Irm� Maria Cristina Bove, da Pastoral Nacional do Povo da Rua. Assim que conversei com ela, meu desalento foi embora, a tristeza tomou outro rumo, as decep��es foram varridas como folhas ao vento.

Nossa! Ainda h� pessoas que pensam e falam a mesma linguagem? Ainda h� pessoas que t�m um olhar de generosidade e afeto para com o outro? Tive que me beliscar para ver se n�o estava sonhando.

Conhecer Cristina Bove e a equipe de trabalho do Canto da Rua Emergencial, na Serraria Souza Pinto, Pra�a da Esta��o, foi um presente do Universo. Afinal, meu mundo se desintoxicou, apesar do coronav�rus. Como se olhasse no espelho da alma e enxergasse os sonhos sendo restaurados pelos melhores art�fices.

Estavam todos ali, guardados dentro de mim, mas cobertos de poeira e mofo. Foi como ressuscitar os sonhos pisoteados, como se a luz interna se acendesse outra vez.

 Uma esp�cie de farol iluminando o caminho de um novo mundo p�s-pandemia, de uma economia fraterna, da argamassa da vida, da sustentabilidade do ser. Irm� Cristina � dessas pessoas que conseguem colher flores na dureza do asfalto.

Aprendi com Cristina que morador de rua n�o � v�tima, mas protagonista, que precisa de trabalho e de casa, de uma sociedade menos cruel, mais igualit�ria. Ela ouve os lamentos que ecoam das cal�adas e ruas da cidade.

Aprendi com Maur�cio que o humor, a eleg�ncia no conv�vio e o bem-querer s�o ferramentas imprescind�veis. Com Bruno, reencontrei o companheirismo, o desenho criativo e profundo de qualquer situa��o. Com Isabella, a ter olhos de raios X para capturar o momento perfeito, a cena da dor ou da gratid�o na hora certa. Com Felipe, aprendi sobre ser jovem e ousado. Com Gelton, que � poss�vel uma economia solid�ria, de troca, de amor ao pr�ximo.

Facilitadores de uma causa antes considerada imposs�vel de virar realidade, eles trabalharam juntos para que a Serraria Souza Pinto abrisse as portas para as pessoas em situa��o de rua.  Um batalh�o de pessoas an�nimas que trabalham nas ruas e pra�as de BH escrevendo uma nova hist�ria.

Eles plantam sementes de esperan�a. S�o jardineiros de uma nova cidade. Transformam indigna��o em a��es.  Fizeram com que eu desenterrasse sonhos. Soprasse as teias de aranha de um mundo que nunca mais ser� o mesmo depois dessa pandemia.

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