O parceir�o de velhas jornadas exalava mesmo odores um tanto peculiares da �ltima vez que o vi. Papo longo. Falamos de pol�tica, religi�o, fam�lia, poesia, cinema, mulheres, futebol e... cerveja. Sim, a nova paix�o dele. Me apresentou uns cinco tipos de artesanais em tempo recorde. Fazia j� uns tr�s meses esse encontro. E aqueles odores ainda permaneciam vivos. C�tricos, florais, sei l� mais o qu�. Misteriosos.
Mas eu, distra�do naquela tarde de s�bado, sonolento, e o telefone ao fundo me devolve ao mundo. A m�e dele me ligando. Apavorada. Frases tr�mulas do outro lado da linha.
– Pelo amor que tem ao seu amigo, n�o deixe de passar aqui em casa o mais r�pido que puder.
Caramba! O que teria aprontado o Rub�o? Figura mansa, incapaz de sacrificar uma formiga (as espantava no sopro), de levantar a voz por mais profunda que fosse a discord�ncia. Inquieto era. E orgulhosamente imprevis�vel. Fui logo vestindo a cal�a, corri para o banheiro pra pelo menos ajeitar o cabelo. E interrompi dona Elza, que parecia chorar.
– Mas o que t� havendo de t�o grave pra deixar a senhora assim intranquila?
Um breve sil�ncio que me angustiou. Uma palpita��o crescente. Juro que a ouvi arfando.
– N�o me sinto segura pra falar sobre isso ao telefone, apesar de ele n�o estar em casa.
Prometi me apressar. Tudo ia e vinha em minha cabe�a. Pensando em mil coisas. Das piores. Doen�a fatal, droga pesada, drama existencial, paix�o sem correspond�ncia. E ele parecia t�o normal quando nos vimos naquela growleria. Tomei o rumo da Zona Leste. O bairro se aproximando, a ansiedade em volume cavalar. Fui contando os passos, j� chegando ao port�o. Bati a campainha, me preparando para o mais tr�gico. Dona Elza me recebeu, banhada num desodorante adocicado que enjoava at� a alma.
– Fique tranquilo, que Rubinho est� fora. Entra, preciso te mostrar uma coisa.
N�o fazia a mais vaga ideia do que seria. Ela me tomou pelas m�os. Falava baixinho, como quisesse manter tudo em segredo. Sentou-se ao sof�, cruzou os bra�os. Voltou os olhos para o alto. Talvez buscasse ajuda divina. E eu at� com os l�bios ressecados, tamanha inquieta��o.
– Acho que seu amigo n�o anda bem da cabe�a.
– Como assim, dona Elza?
– Est� em todos os lugares da casa. Comecei a notar h� umas duas semanas.
Eu a interrompi, pilhado:
– Mas o que est� em todos os lugares?!?!
– Vem que eu vou te mostrar.
O caminho era o da cozinha. Geladeira. Abriu um pote de manteiga. Havia uns tra�os verdes. Exibiu as bordas do queijo. L� tamb�m. E se repetiam nas laterais da panela. Ao banheiro, vest�gios na escova! O aroma era, de longe, familiar. E era bom...
– Acha que � algum tipo de droga?
Permaneci mudo, porque Rub�o jamais havia tido qualquer inclina��o por se drogar. A m�e levantou o colch�o, tirou livros do arm�rio, abriu gavetas. Foram saltando os pacotinhos vazios. Um, dois, tr�s. Li. Vinham do exterior. Odor instigante. Uma pesquisa r�pida, e l� estava: l�pulos.
– U�, mas servem pra qu�?
Fui conferir as descri��es. Em resumo, davam dose de amargor, aroma e sabor � cerveja. Ela se sentou e respirou longo, aliviada.
– Ah, � s� isso...
Aos poucos, fui entendendo. E n�o deveria me surpreender. Rub�o era mesmo um cara intenso. Passara um ano em mosteiro, a que se convencesse definitivamente do ate�smo. Tr�s semanas numa carvoaria no Norte, a que confirmasse den�ncias de trabalho escravo. Dois meses numa aldeia ind�gena, a que vivenciasse ca�a, pesca e poliamor. Agora, esse mergulho na cerveja artesanal. N�o demorou, o barulho da chave no port�o. A cachorrada recepcionando. A alegria do reencontro. E a sinceridade que lhe era pr�pria:
– Putz, nem avisou que vinha. T�o com uma cara estranha. Algo errado?
Menti. N�o, nada.
– Passei pra matar saudade.
Ele logo chamou pra cozinha, seu canto preferido. Abriu a geladeira, esticou a jarra com aquele concentrado verde. Ah, n�o. N�o iria me fazer beber aquilo...
– Prova a�.
Encheu um copo. Eu at� prendendo a respira��o, imaginando amargor, resultado ex�tico. Levei � boca, relutante. Al�vio!! Gosto familiar. Suco de abacaxi com couve. Ufa!!
– Cara, t� mergulhado nuns estudos de arrepiar.
– Opa, conta a�.
– L�pulo, l�pulo, o cora��o da cerveja. Ando, literalmente, comendo l�pulo.
Fiz cara de surpresa, ar de desentendido. Uma piscadela pra dona Elza.
– Fala mais, porque tudo � novidade pra gente... Ah, e abre uma artesanal pra ir guiando a conversa.
Esta coluna � publicada quinzenalmente