

N�o era pela bebida. Melhor, era. Muita gente diria: “Mas que mal h� em sonhar com cerveja?”. Verdade � que jamais havia me imaginado num lugar daqueles. Uma cadeira confort�vel, em que a gente quer se deixar ficar. Uns quadrinhos discretos, os livros metodicamente organizados na pequena biblioteca. E um sil�ncio que me fazia perguntar de novo e de novo: o que � que estava buscando ali?.
Eu experimentava um misto de ansiedade e, confesso, uma certa ponta de al�vio. N�o tinha sido f�cil a decis�o. Procurar um consult�rio de an�lise. Nem sei como reagiria �quela sensa��o de me ver devassado, de me expor. Pensava nisso, quando o trinco da porta lateral se moveu, meio que me tirando do transe. Ela adentrou num sorriso acolhedor. Aquilo, de alguma forma, confortava.
– Bom dia, Francisco. Cervejeiroooo... � mestre cervejeiro?
– Estamos a caminho, quem sabe um dia...
Ela falava e o fim das palavras ganhava musicalidade. Ta�: gostei da primeira impress�o. Fiquei � espera da frase seguinte. Ela me olhando, eu, consulta inicial, sem saber quem come�ava o qu�. N�o tinha ideia de como “abrir” a sess�o. Se mencionava o amigo que a indicara. Se logo apontava o que me angustiava. Ou se haveria um bord�o cl�ssico, tipo: “O que � que o traz aqui?”, “Como podemos ajud�-lo?”.
Da�, me surpreendi. Depois de se apresentar, ela fez o convite:
– Me conte um pouco do seu dia, Francisco.
Juro que sempre tive certa dificuldade de falar de mim. Me desconcertava. E arrisquei:
– A senhora se incomoda se o assunto puder ser a minha noite?
Delicadamente, ela moveu os olhos ao rel�gio. Eram 17h30. Percebi a incongru�ncia e pronto me expliquei.
– Desculpe, n�o � dessa noite, claro. � das minhas noites.
– E o que h� de especial nas suas noites?
– Quem dera tivessem s� o lado especial...
N�o era bem uma resposta. Era quase um pedido de ajuda. Falei, suspirei. A analista percebeu as retic�ncias e esperou meu segundo movimento.
– Tou virando prisioneiro dos meus sonhos, doutora.
– E o que exatamente anda te incomodando neles?
– A repeti��o. A incapacidade de fazer parar, de controlar. E a sensa��o de que s�o t�o reais que me fazem acordar uma, duas vezes madrugada adentro.
– E eles obedecem a uma l�gica ou s�o algo que passa pro lado do surreal? Como � que os descreveria?
Cocei a cabe�a, pensei numa maneira mais objetiva.
– Bom, eles s�o meio que um filme repetido. H� sempre o vazamento que vai inundando todo o quarto. � do tanque de fermenta��o, � de uma chopeira, � da mangueira desconectada. Vaza a cerveja toda e eu, feito um louco, tentando fechar uma torneira, uma v�lvula, sem conseguir. Sonhando, entro em parafuso. J� virou pesadelo, n�?
A caneta dela agora se movia com mais velocidade, como se esperasse por aquele �pice, como uma espuma abundante. Deu-se um sil�ncio. E voltei:
– Tou doente, doutora?
Perguntei e fui contando da op��o pela carreira cervejeira, nem t�o nova nem velha. Que abrira uma pequena produ��o pr�pria e tralal�...
– N�o, Francisco. Tenha certeza, isso � resultado da ansiedade. Essa esp�cie de mal-estar que entra �s vezes sem convite n�o exclusivamente na sua vida, mas no leito revolto da humanidade em diferentes graus. E abrir-se sobre isso � sinal maduro de sanidade.
– E o que fazer, doutora, dormindo com essa interroga��o que, desculpa a for�a de express�o, embebeda quase todas as minhas noites?
A sess�o prosseguiria, eu retornaria mais vezes. E jamais me esqueceria da frase. Longe das receitas prontas, longe dos clich�s, tinha um qu� de trocadilho, um qu� de instigante desafio:
– Beba mais de suas esperan�as do que de suas incertezas.
Um brinde, doutora. Continuo sonhando. Mas agora sonho diferente.
*Jornalista, escritor e cervejeiro