
Se era verdade, eu n�o sei. Mas como foi divertido! Da ponta da mesa, enquanto ia e vinha com os dedos por entre a barba (em que tempo inventaram o estere�tipo de cervejeiro no estilo lenhador?), Guto repisava a hist�ria. A cada descri��o, adicionava detalhes que tornavam tudo uma cole��o de lances t�o atraentes quanto fantasiosos. E eu apimentando:
– Ent�o, quer dizer que sua cerveja, que transita s� em dois quarteir�es do Barreiro de Cima, foi parar l� do outro lado do mundo. E voc� bebeu dela num vilarejo do Pac�fico...
As �rbitas dele fizeram aquele movimento de drag�o ferido.
– Putaquipariu!!! Vou contar de novo pra ver se acreditam.
Envergou o copo at� o fim. Pausa. Todos vidrados nele para a retomada do caso. Dava a ele atmosfera que remetia a m�sicas do estilo Roberto.
– A noite era de chuva fina. Eu limpava o balc�o, j� me preparando pra fechar o bar, quando ela surgiu. Tinha jeito de gente perdida. F�lego acelerado. Me olhou, conferiu as prateleiras, examinou os quadros. Sem se mover um mil�metro. Saudei. Respondeu em sotaque estrangeiro. Fei��es orientais.
Um dos nossos quis saber, impaciente:
– Mas falava nossa l�ngua?
– Nada... Usei todos os protocolos, at� parar naquele meu ingl�s macarr�nico. Fui oferecer e, feito m�gica, ela balbuciou a palavra cerveja num portugu�s cristalino.
Um mais ansioso interrompeu:
– Conta a rea��o dela, caramba!
– Deu um sorriso de quem finalmente encontra uma coisa especial que nem parecia procurar. Sugeri uma Stout, das punks, mas ela preferiu uma Blond Ale, das Belgian.
– E gostou?
– Gostou?! Ela amou!! Saiu de l� com duas caixas. Falou o nome tr�s vezes. Juro que n�o guardei. Tailandesa. Cinco meses depois, pra onde eu viajo a trabalho? Tchar��... Tail�ndia!
A turma era um po�o de incredulidade. Um de n�s se antecipou ao que soava como suprema invencionice.
– Vai dizer que, por obra do acaso, topou com a tailandesa e com sua cerveja l� no quiproc� de uma vila do Pac�fico?
– Exatamente. E ela n�o acreditou quando cruzei a porta. O espanto foi tamb�m meu. Boquiaberta, dava gritinhos, apontava o dedo, cobria e descobria o rosto com as m�os.
Algu�m logo quis saber como terminava a parada.
– Ah, v�o seguir sem saber se tenho filho tailand�s com uma verdadeira sereia.
Mas jurava, invocando santos, que desde ent�o ganhara olhos com contornos orientais. Tinha mesmo.
Ah, v�...
No papel de mestre da provoca��o, instiguei:
– Mais algu�m com casos da s�rie ‘Isto � incr�vel’?
Foi que Miro, que raro se manifestava, levantou o bra�o. Surpresa, porque variava unicamente de cerveja a rock pesado.
– Se lembram daquela Red Ale que produzi no in�cio do inverno?
A maioria n�o se lembrava, mas, beleza, balan�amos a cabe�a.
– Vendi todo o lote com o primeiro copo que servi.
– Calma a�, o assunto � cerveja. De pescaria a gente fala depois.
– Verdade, porra! Era um s�bado daqueles em que a cidade toda parece ter viajado e n�o entrava ningu�m na growleria. A m�sica pesada no talo...
– Pera�, n�o exagera. Seu fermentador menor � de 3 mil litros. Como � que vende isso num estalar de dedos?
– Vendi. Mas foi o meu neg�cio mais sinistro.
Os amigos se entreolhando, esperando o pr�ximo lance.
– O sujeito assinou um cheque ali na hora. Reparei nos dedos longos. Voz cavernosa. Ao se despedir, falou num tom um tanto sombrio: ‘Seu Miro, esse neg�cio tem o significado de um pacto’.
– Mas o que ele quis dizer com pacto?
– Sei l�. Dei de ombro, carregando o chec�o que salvava mais do que o trimestre. Depositei, entrou na conta, mandei entregar.
– E termina assim?
– Pior que n�o. Antes de sair, ele se virou e, indicador em riste, praguejou sobre a trilha sonora.
– Foda-se. Se pagou... E como o cara se chamava?
– Nome esquisit�o. Tal de Cauby. Cauby Peixoto.
– Cauby Peixoto, o cantor?!?! Mas o cara morreu faz mais de dois anos, doido!
– Taquipariu, gente!! Ent�o ser� a voz dele que, do nada, entrecorta toda noite de rock l� no bar? E a galera adorando, achando que � discotecagem da hora aquela can��o como uma navalha no v�cuo de um Sepultura e Black Sabbath:
– ‘Concei��o, eu me lembro muito bem...’.