
Descrente desses fen�menos – n�o me inspiravam tar�, ciganas, futur�logos, jogos de b�zios, cartomantes –, cheguei ao sal�o com a alma desarmada. At� que me despertasse o som da tampinha se desprendendo do gargalo, seguido pelo encontro espetacular de l�quido e espuma formando aquela imagem sedutora.
O primeiro sommelier emborcou a ta�a, a que sentisse vagarosamente os aromas, para depois levar uma fra��o � boca. A descri��o cabia em qualquer manual. Anotei em minha caderneta. Exalta��o aos �steres frutados na medida desej�vel, nobre delicadeza no buqu� e notas de ameixa em meio a um grau de acidez que tornavam tudo caprichosamente equilibrado.
Eu com uma ponta de decep��o, imaginando que a interpreta��o ficaria naqueles marcos simplificados, quando o especialista soltou as p�rolas iniciais do dia:
– Uma cerveja feita � base de fogo direto e armazenada em fermentadores de parede dupla.
Anotando, dei de me perguntar se a s�rie de revela��es de an�lise sensorial, ficando surpreendente, se encerraria por ali. Qual nada...
– Ah, com malte mo�do minutos antes, o que potencializou habilmente a extra��o de a��car, e l�pulos europeus das safras 2016 e 2018 cujos �leos essenciais...
Uouuuuu!!!! A sensa��o agora era de espanto. Ao fundo, uma figura comovida tentava p�r freio ao choro. Ningu�m mencionou, mas muito provavelmente o dono da receita. Ele ainda solu�ava no momento em que se ouviu o segundo destampar de garrafas. Ligeiramente mais grave que o anterior.
E o jurado repetiu todo o ritual, o de rodopiar a ta�a, abrindo caminho � migra��o dos perfumes. A cena comovia. O rubi pronunciado no cristal, num transl�cido que remetia a joias de museus. Uma aspira��o arom�tica, um trago curto. Foram alguns segundos de suspense:
– Fermenta��o de 26 dias. Adi��o de gr�os de torra m�dia. Boa parte da cevada colhida nos dias que abriram a primavera brasileira.
Ele manteve o exame da bebida, erguendo-a no contraluz de pegada barroca. E emendou:
– Veio de uma panela de 100 litros, cujo cozimento foi embalado por uma t�pica colher de madeira.
Caramba!! Aquilo, afinal, era concurso de cerveja ou disputa de especialistas em degusta��o? Ah, esperasse pela �ltima avalia��o do dia. Assim que cessaram os coment�rios incr�dulos da plateia sobre aquela etapa, espocou-se a terceira tampinha.
A espuma rica e a turbidez j� entregavam. Era uma trigo. A sommelier fechou os olhos, como se ampliasse o raio de percep��o olfativa. N�o deixou transparecer, mas notei que se alegrara. Levou � boca, ainda com as p�lpebras cerradas, e deixou longo o l�quido rumar �s papilas gustativas. Lembrava algu�m entregue a um mantra. E sugeria sair de um transe ao retornar com um olhar que, eu jurava, n�o lhe pertencia.
– Cerveja feita por mulher. Com controle t�o preciso sobre a temperatura de fermenta��o, que banana e cravo aqui dialogam como ponteiros su��os.
A analogia levava um qu� de contradit�rio. Exatid�o n�o representava processo mec�nico em lugar de artesanal? A sommelier tratou de colocar todos os pingos nos is.
– Mesmo milimetricamente precisa, essa Weiss traz notas em curvas t�o generosas, que aparenta ter sido produzida ao p� de montanha mineira.
� minha esquerda, uma garota ali por volta de seus 20 anos n�o mandava mais nas m�os. Iam da boca (as unhas miseravelmente ro�das) ao cabelo e se fechavam em concha sobre a face. Claro, a cerveja era dela. Ao que a jurada arrematou, sem medo de que a vissem no exerc�cio das bruxarias:
– No processo de fervura, pelo menos por quatro vezes foi tocada Casa no campo, de Z� Rodrix e Tavito.
Conferi, e a menina acabava de desmaiar. Ela se recompunha, at� ouvir mais da sommelier:
– Ah, com interpreta��o de Elis Regina. E n�o pensem em celular. Foi no vitrol�o.
O que veio dali em diante me contaram, porque desmaiamos eu, a garota e mais uns oito. Irremediavelmente mergulhados no caldeir�o das alquimias cervejeiras.
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