
Jornalista, escritor e cervejeirou
Havia uma s� luz na f�brica, tarde da noite, naquele come�o de novembro. A turma toda j� desplugada, e restava ali um Guto afinando a receita da Apa. Havia quebrado a cabe�a numas tr�s produ��es, e a cerveja longe do ponto com que sonhava. Um ajuste, mais outro, e ainda sem chegar ao buqu� e ao equil�brio esperados. Num ano em que tinha mais a agradecer, o acerto daquela American Pale Ale o fizera cruzar noites insones.
Uma conta, uma proje��o, os sinais de que estava perto de solu��o, foi que ouviu a voz. Um susto monumental, o pulo da cadeira e de pronto agarrou-se � chave de fenda. O celular � m�o esquerda no modo socorro. Cora��o descompassado, conferiu: entre a panela de cozimento e a de clarifica��o, a figura corpulenta. Est�tica. Emudeceu e, reordenando as ideias, se perguntou se delirava ou se corria risco de verdade.
Agora, n�o entendia mais nada. O homem lhe sorria. Armou-se em posi��o de defesa e escutou a frase na contram�o:
– Calma, Guto, calma.
– Mas que porra � essa? Um doido fantasiado de Papai Noel... Quer morrer? Quer me matar? � uma pegadinha essa merda?
Entre o suor quente e o calafrio, tremendo, n�o se desgarrava da chave de fenda. Um movimento em falso e estaria pronto pra atacar.
– Mas que diabos quer? Quem te contou meu nome? Quem, afinal, � voc�?
– Sou o que voc� est� vendo, sem tirar nem p�r: Papai Noel.
– Se n�o sair daqui nesse instante, j� vou ligando pra pol�cia.
– Calma, Guto, calma.
– Calma o cacete. Que zona � essa? Pra come�ar, voc� nem existe. De mais a mais, n�o confio em estranhos. E nem Natal �.
Os dois ficaram se olhando, medindo mutuamente os gestos, como numa cena de faroeste.
– Vim pra presentear, ajudando com a Apa.
Ele at�nito com a refer�ncia � Apa.
Seguia tr�mulo.
– Ah, n�o... Quem armou essa palha�ada? Juarez, V�nia, Virg�lio?
No entremeio das frases, ia conferindo a indument�ria do desconhecido. Num rubro denso. Barb�o num branco neve. Botas que remetiam �s temperaturas impiedosas do Polo Norte, muit�ssimo longe de combinar com o sol a pino do Brasil. No fundo, se acalmara.
– Escuta, quem fez essa arma��o toda nem pensou em disfar�ar a cafonice dessa roupa, dar uma tropicalizada?
– Relaxa. Deixa o imagin�rio coletivo manter vivas essas tradi��es.
– Tradi��o de qu�? Voc� nem existe. � produto comercial, miragem.
O visitante parecia ter acusado o golpe. Fixou-se em Guto com ar de autocompaix�o. Mirou-o por sobre os �culos e deu tom sereno � voz.
– Estou aqui por voc�. Pela sua Apa. Se realmente preferir, me despe�o e parto.
Ah, valei-me! Guto, na verdade, n�o sabia como proceder. N�o acreditava em nada daquilo e julgava que o tomariam por louco se contasse desses di�logos. Era, grosso modo, como uma conversa de b�bados: um mestre cervejeiro trocando impress�es sobre carga de l�pulos e concentra��o de malte com ningu�m menos que... Papai Noel.
Parecia finalmente disposto a ouvir, meio c�tico, meio cr�dulo. Ainda assim, ironizou.
– T� bom, o que tem a dizer o meu guru?
– Menos � mais, Guto.
Deu foi uma gargalhada.
– Porra, sai do cafund� pra vir com uma frase decorada de reality gastron�mico? Clichez�o de autoajuda?
Mas acabaria, em seguida, ouvindo min�cias sobre uma receita da qual raros tinham conhecimento.
– Tire um percentual X dos maltes especiais, reduza o grau daquela lupulagem. Troque o perfil do terceiro l�pulo por esse, mais pr�ximo do que busca.
Estava de fato surpreso. E a conversa ganhava ar de camaradagem. Foi redesenhando a elabora��o e, modelo que soava ideal, tirou os olhos do caderno para matar uma d�vida. Ar de espanto, viu t�o somente o gato Nicolau esparramado sobre as caixas de papel�o. O tal Papai Noel? Nem rastro.
Talvez houvesse mesmo delirado. Mas os c�lculos refeitos da Apa, dem�nios, emergiam ali cristalinos. E apostaria neles. No dezembro, cerveja pronta, embasbacara-se. Sen-sa-cio-nal! Com buqu� e equil�brio como poucas.
N�o escutaria outra coisa de amigos e de quem mais provava que n�o fosse a express�o de contentamento. Entre um e outro elogio, pensava na figura do Papai Noel que – real ou fantasia – o visitara. No abrir e reabrir o caderno com todos os passos da produ��o, se deparou com o fio longo de barba, num branco alvo. Aquilo o tirou do prumo. Conferiu ao redor. Ningu�m mais que o grupo cervejeiro.
E V�nia, tom sempre provocador:
– Essa receita � sua mesmo?
Foi seco:
– N�o.
Os olhos voltando inquisitoriais, gargalhou.
– Minha n�o. � de outro mundo. � do Papai Noel, seus filhos da puta. Amo voc�s.