
A quarentena est� sendo, sem d�vida, um momento prop�cio para intentar refundar valores e elaborar novos par�metros, que ajudem a definir o que s�o “sucesso e fracasso” na vida. Algo assim como descolonizar o nosso intoxicado imagin�rio e construir caminhos, estimulando a capacidade de enxergar modelos alternativos de futuros poss�veis, para cada um de n�s e para toda a humanidade. Nesse sentido, o isolamento pode ser criativo e nos incentivar � procura de novas fontes de esperan�a e inspira��o, centrando a aten��o no di�logo interior. A solid�o � a gl�ria de estar s�, pois “todo pensamento, falando estritamente, � elaborado em solid�o e � um di�logo entre eu e eu mesmo” (Hanna Arendt).
Nesse sentido, a crise originada a partir da pandemia, tem devolvido para o centro da nossa vida, e espera-se que tamb�m para dentro das escolas, temas fundamentais que nos preocupam e que eram ou tabus ou inconscientemente escamoteados e, portanto, banidos da abordagem nas rodas sociais, nas reflex�es pessoais ou dentro do ambiente escolar.
Estou me referindo a temas t�o essenciais como a procura pelo sucesso, o reconhecimento social, a realiza��o pessoal e a felicidade. Contrapostos, geralmente, a outros como fracasso, solid�o, n�o reconhecimento social e infelicidade. O cume dos poucos privilegiados apontando para a gl�ria e o reconhecimento eterno; o destino da maioria, determinado para o fracasso e a morte inconsequente. Como se o destino final n�o fosse comum: “O horror da morte � a emo��o, o sentimento ou a consci�ncia da perda de sua individualidade” (Edgar Morin).
No interior mais profundo do Brasil, nesse brasil que o Brasil desconhece, o povo simples distingue entre “morte morrida” e “morte matada”. Faz-se assim, no imagin�rio popular, um corte necess�rio para a compreens�o e explica��o do que seja a morte “natural”, a que vem de Deus e do processo de finitude da vida, e aquela na qual o ser humano se arvora em deus, para poder dispor da vida e da morte dos outros ao seu bem entender. Bela e tr�gica, ao mesmo tempo, a narra assim o poeta pernambucano Jo�o Cabral de Melo Neto (1920-1999): “E se somos Severinos iguais em tudo e na vida, morremos de morte igual, mesma morte severina: que � a morte de que se morre de velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte, de fome um pouco por dia, de fraqueza e de doen�a/ � que a morte severina ataca a gente em qualquer idade e at� a gente n�o nascida” (em Morte e Vida Severina).
Empurrada pela agenda do modelo neoliberal, a procura desenfreada por “felicidade”, “dignidade” e “amortalidade”, a escola tamb�m fixou seu fazer educacional nesse modelo maluco e estressante, perdendo de vista os fundamentos do ser humano e seu desenvolvimento individual e social. Obrigada a focar o “sucesso” dos estudantes e sua realiza��o pessoal e profissional, a escola cavalgou no lombo de alguns conceitos que se tornaram m�gicos: “ser vencedor”, “para sempre”, “ter a vida resolvida”, “ser algu�m” e assim trabalhou no imagin�rio de crian�as e adolescentes ideais e atitudes que ajudaram a consolidar esses valores como os �nicos aut�nticos.
Preparamos os nossos estudantes para a gl�ria e a realiza��o pessoal, passando, se necess�rio for, em cima de tudo e de todos. A gl�ria � se “formar bem”, conseguir um bom emprego e ganhar dinheiro para poder encarar o resto da vida tranquilo, com a certeza de que isso lhe consolidar� como um vencedor e durar� “para sempre”. Assim, brincamos de imortalidade.
A COVID 19 nos desvendou uma realidade cruel e insofism�vel, mostrando que tudo pode se desmanchar no ar, que tudo � ef�mero, que a finitude � uma realidade presente nas nossas vidas e que a morte, como horizonte real, nos invade de forma avassaladora. Em poucos meses, os fundamentos do modelo de sociedade dominante ru�ram como um castelo de cartas e, de repente, nos sentimos conscientes e amea�ados. Ser� que, finalmente, assumiremos que todos somos humanos, todos mortais, todos finitos, todos com a grandeza da gl�ria e do fracasso incorporados na nossa vida? Reconhecer isso ser� o nosso grande ganho, como pessoas e como humanidade.
A escola, pilhada nesse sucateamento pessoal e comunit�rio, n�o pode e n�o deve reproduzir, pura e simplesmente, a din�mica social dominante. Muito pelo contr�rio, ela est� obrigada, neste momento hist�rico, a educar para op��es alternativas de vida e somar na constru��o de novos valores, que ajudem nossos estudantes a entender que suas vidas devem estar a servi�o da vida, de forma colaborativa e complementar. A escola dever� aprender a conjugar os verbos incluir, cuidar, educar e humanizar. Gl�ria ou fracasso de todos!
A pandemia, que teve for�a suficiente para colapsar hospitais, fechar f�bricas e com�rcios e trancar as portas de escolas e universidades, n�o conseguiu acabar com a educa��o. Muito pelo contr�rio, a potencializou: multiplicaram-se o n�mero de salas de aula, de professores, de metodologias e de trocas, abrindo novos e impensados caminhos. Isso nos mostra que a educa��o � maior, muito maior, do que as escolas e os sistemas escolares. Surgir� um “novo modelo educativo”? Tomara que sim, pois, parafraseando Walter Benjamim, “que ap�s uma crise, as coisas continuem como antes, eis a cat�strofe”.
Francisco Morales Cano foi diretor geral do Col�gio Santo Agostinho BH durante 20 anos. Atualmente � s�cio diretor da DOXA Educacional