Di�rio da quarentena

Geleia invis�vel
Bemti
Violeiro, cantor, compositor e cineasta
Os �ltimos dias t�m me afogado num ritmo pr�ximo ao que eu vivia antes da pandemia. Sigo em casa, mas cansado de um jeito que n�o me sentia h� meses. Ser trabalhador da cultura no Brasil hoje parece ser como andar numa geleia invis�vel: o que j� era dif�cil ficou exponencialmente pior. Estou exausto, girando as engrenagens do meu segundo disco (que sairia esse ano, mas que adiei pro ano que vem).
De janeiro at� mar�o, eu e minha viola caipira tocamos, em ordem, em Belo Horizonte, Buenos Aires (esgotado, meu primeiro show fora do Brasil), Montevid�u, Porto Alegre, Bras�lia, Rio, S�o Paulo e Recife. Botei o p� em Recife quando as datas seguintes foram todas canceladas e esse �ltimo show j� aconteceu sob um clima fantasmag�rico em que ningu�m estava entendendo muito bem o que viria. Esse in�cio do ano parece agora um del�rio distante, mem�rias que parecem mais longe do que coisas que vivi anos atr�s.
Comecei 2020 me gabando por entrar no ano mais organizado da minha vida. Lembro muito bem da satisfa��o de saber em janeiro o que eu faria na segunda quinzena de novembro, e de ouvir minha produtora falando depois de uma reuni�o: “Pode comprar o chester pro Natal, seu ano est� pronto!”. Como bom mineiro desconfiado, devia ter sabido que estava bom demais pra ser verdade, mas nada podia me preparar pro que realmente destruiu aquele cronograma t�o in�dito pra mim...
Sa� de Recife direto para o Tri�ngulo Mineiro, e passei os quatro meses seguintes com meus pais numa quase zona rural. Canalizei o luto pelo cronograma desfeito e pela situa��o completamente tr�gica do Brasil de diferentes formas. O desespero – no micro e no macro – primeiro me fez assistir s�ries demais e comer doce demais. Depois, passei a correr e a fazer exerc�cios todos os dias, me sentindo grato por ter um espa�o que a maioria dos meus amigos em Belo Horizonte e S�o Paulo n�o tinham.
Em pouco tempo, estava correndo em torno de 4km por dia e, em junho, j� havia emagrecido 7kg. Durante as corridas, muitas vezes acompanhado do meu pai, consegui me reaproximar dele de um jeito que talvez n�o conseguiria no ritmo “normal” das coisas. Tamb�m correndo, encontrava motiva��o para trabalhar nas m�sicas do segundo disco, um projeto que eu sempre planejei como um tratado sobre o poder do afeto numa sociedade em colapso, e que ironicamente se chama Logo ali. Minhas letras rom�nticas apocal�pticas de antes da pandemia ganharam um peso completamente novo.
Nas redes, vejo as fotos do meu amigo m�sico que dividiu o palco comigo em Montevid�u: desde maio, ele voltou a fazer shows no Uruguai. Uma amiga cineasta perdeu um trabalho, pois a produ��o desistiu de gravar no Brasil e foi para o pa�s vizinho. N�o sei quando farei shows com p�blico de novo. No momento em que escrevo esse texto s�o 45 mortos por COVID-19 no Uruguai. � como se no Brasil fossem 2.700 mortos e n�o 130 mil. Como se em Minas Gerais fossem 270 mortos e n�o 6 mil (com uma subnotifica��o imensa). A mesma terra e a mesma fronteira, mas sociedades diferentes. O fardo tropical de ser brasileiro inunda o meu segundo disco, mas o afeto segue sendo arma e escudo, mesmo no pior do pior do pior do pior dos cen�rios poss�veis. Com afeto aguentaremos.