Virginia Siqueira Starling
Jornalista e autora da futura biografia de Zuzu Angel, "Quem � essa mulher" (Todavia)

Em depoimento enviado � Comiss�o Especial de Mortos e Desaparecidos do Minist�rio da Justi�a, no final dos anos 1990, Chico Buarque explicou que aquela era uma homenagem “a uma mulher como nunca vi igual, ferida de morte e rindo”. A homenagem a que se referia era a can��o “Ang�lica”, composta em parceria com Miltinho, em 1977, e gravada em 1981; e a mulher incompar�vel, Zuzu Angel.
“Quem � essa mulher”, indagam Chico e Miltinho, logo no primeiro verso. Eles far�o a pergunta de novo e de novo, no in�cio de cada uma das quatro estrofes, como se mergulhassem sempre mais fundo na busca pela mulher que tentam definir e apresentar.
Zuzu n�o � algu�m que se explica em uma frase – � insuficiente dizer que foi uma designer de moda que perdeu o filho e, posteriormente, a pr�pria vida para a repress�o da ditadura militar. Em “Ang�lica”, Zuzu �, antes de mais nada, m�e. E a can��o em si emula o seu lamento, partido pela ambival�ncia do trauma do luto.
Entre lembrar a dor e desejar esquec�-la, Zuzu – e os compositores – optam por lembrar. “S� queria lembrar o tormento/Que fez meu filho suspirar”, pranteia a m�e-Ang�lica atrav�s do cantor, como Zuzu insistia em fazer. Ela s� “queria embalar (seu) filho/Que mora na escurid�o do mar.”
Em maio de 1971, o primog�nito de Zuzu, Stuart, foi preso, torturado e morto nas depend�ncias do Centro de Informa��es e Seguran�a da Aeron�utica, na Base A�rea do Gale�o. Desde o momento em que recebeu a liga��o informando da captura de Stuart, Zuzu, cuja carreira estava em plena ascens�o, entregou-se � miss�o de descobrir o paradeiro do filho. Era uma miss�o angustiante, penosa e que, em 1975, transformou- se no pior pesadelo de uma m�e.
Por meio de uma carta, Zuzu recebeu a confirma��o do assassinato de Stuart. Nem enfrentando generais e pol�ticos e executando o primeiro desfile de moda abertamente pol�tico do mundo, ela conseguiu arrancar a verdade dos militares. Jamais obteve qualquer declara��o que fosse acerca do destino de Stuart e tampouco recebeu o direito de velar e sepultar o corpo do filho.
Zuzu nunca deixou que ningu�m esquecesse a hist�ria de Stuart, e tampouco a sua pr�pria. Mas fazia o que fazia por todas as m�es, e n�o s� por si mesma. Repetia-se em seu estribilho, cantando “sempre o mesmo arranjo”, pois era inconceb�vel esquecer e permitir que outras m�es e filhos tivessem o mesmo destino que ela e Stuart.
Incomodaria os militares at� o �ltimo momento de sua vida, cantando “por (seu) menino/Que ele j� n�o pode mais cantar”.
Em abril de 1976, foi assassinada em um acidente de carro, planejado pela mesma repress�o respons�vel pela morte de Stuart quatro anos antes. Quando a can��o de Zuzu foi brutalmente interrompida, Chico Buarque e Miltinho perceberam como podiam contribuir. A luta precisava ser lembrada; seu lamento, imortalizado; sua can��o, retomada para enfrentar o autoritarismo da ditadura e reconhecer seu legado aterrador.
Eles cantariam por ela e por Stuart, privados de defesa e condenados ao sil�ncio – por�m, n�o ao esquecimento: contariam a verdadeira hist�ria atrav�s da m�sica, desafiando as vers�es dos militares e registrando seus crimes. Assim nasceu “Ang�lica”, sobre uma m�e que vestiu o luto n�o apenas para simbolizar a sua perda, mas para denunciar a escurid�o de um pa�s que assassinava seus pr�prios jovens. E esse mesmo arranjo ressoa, contundente, em nossos ouvidos. Para que jamais nos acostumemos aos lamentos de m�es e filhos, cansados de tanta viol�ncia.