
Nosso pertencimento ao mundo humano depende da linguagem, do que ela espera de n�s. Nos tornamos humanos ao assimilarmos a linguagem comum ao grupo a que chegamos e devemos pertencer. Nascemos virgens de conte�dos e entendimentos, nem mesmo sabemos ter corpo. E corpo sem marcas, saberes, experi�ncias.
Nosso corpo � marcado pelo contato humano, afetado pelo afeto, olhar, pelo desejo do outro. Os sons, a voz – materialidade sonora – abrem caminhos e trilhamentos, que s�o caminhos de aluvi�o por onde escorrer�o afetos, libido, gozo, desejo determinando escolhas e experi�ncias.
Recebemos nome pr�prio de nossos pais e ent�o passamos a existir. Assim como ao nomear dia e noite Deus fez com que eles existissem. Ele, mesmo n�o dizendo seu nome porque se apresentava em sar�a ardente com o famoso “Sou o que Sou”, ou mais corretamente traduzido do hebraico “Serei o que Serei”, embora sem nome pr�prio que o determinasse, nomeava tudo que ent�o tomava exist�ncia e corpo.
E aquele que n�o se insere no discurso corrente perde a linguagem dos outros e fica apartado de seu grupo, alienado em seu del�rio solit�rio, impossibilitado de compartilhar a realidade, restando-lhe apenas restos de real sem nomes.
Ficar� sem sin�nimo para nenhuma coisa, como disse Clarice Lispector sobre seu personagem Martim, em A ma�� no escuro, que, tendo matado sua mulher, se pergunta se sentira algum horror pelo ato, seria o que a linguagem esperaria dele, e n�o encontrando mem�ria disso, foge para o deserto e enlouquece.
Ele foge para o deserto e l� se senta em uma pedra quando parece integrar-se � natureza in�spita, quase como um elemento a mais, inumano, compondo a paisagem. Um homem des�rtico no deserto. Um homem que perdeu sua humanidade quando perdeu a linguagem.
Perder a linguagem � enlouquecer. � se retirar do l�xico comum, de valores e ideais comungados por um grupo, uma cultura em que se est� inserido e cair na marginalidade da loucura. Assim compreende a autora da obra A ma�� no escuro, que esperou longos anos para ser publicada devido � hesita��o dos editores com t�o incomum romance.
Comentou ter aprendido muito ao escrever a obra que at� a ela mesma surpreende. Narrar t�o precisamente a perda de si pr�prio a partir da perda linguagem � concluir a import�ncia de pertencer ao discurso, que � como trilhos por onde corre a linguagem comum. Sabia instintivamente, ou por experi�ncia pr�pria talvez, que a palavra � o la�o que nos permite acesso ao outro, pertencimento a uma cultura.
Segundo nos conta o bi�grafo de Clarice, Benjamim Moser, sobre esta obra, o personagem principal, Martim, � tomado pelo temor da insanidade que paira sobre aquele que “passa para o outro lado da vida”. O homem tinha a tend�ncia de cair na profundidade, o que um dia ainda poderia lev�-lo a um abismo, escreveu a autora.
Assim tamb�m trabalha o psicanalista, que faz sua escuta do que de mais singular traz cada um que vem para falar de si. Escutamos os sons daquele sujeito, os elementos l�gicos de seu sintoma e dos circuitos que percorre. O que difere e faz do sujeito algo t�o �nico � que cada um tem seus pr�prios sons, registrados desde os primeiros contatos, e sons humanos que afetaram nossos corpos.
Ningu�m copia os sons do outro, eles s�o absolutamente �nicos, derivados das marcas inconscientes desde o in�cio de sua exist�ncia e que ecoar�o nele para sempre.
A cl�nica da psican�lise nos demonstra que “sabe-se” de tudo isso, sem saber, a escrita de cada um est� registrada no pr�prio corpo. A escuta dos sons de cada um nos ensina a especial fun��o do analista em captar na palavra aquilo que importa e que mais representa aquele que fala.