
Uma vez por m�s, Maria Jo�o Pires pegava o trem em Munique para encontrar-se com o lend�rio pianista alem�o Wilhelm Kempff. Ela se mudara de Portugal para a Alemanha para completar seus estudos. "Kempff n�o era meu professor, mas eu tocava para ele. Eram momentos importantes, foram fundamentais em minha carreira."
Se a conversa chegou a Kempff, � porque come�ou um pouco antes, em Beethoven. Maria Jo�o Pires � uma das maiores pianistas do mundo – e sua vis�o sobre a obra do compositor � um dos motivos para a fama atingida em 70 anos de carreira (se contarmos como marco inicial o primeiro recital p�blico, dado aos 5 anos).
"Beethoven ganhou a import�ncia que teve em minha vida depois da mudan�a para a Alemanha. E a base do aprendizado foi o conhecimento profundo que Kempff tinha de sua obra. Naqueles encontros, comecei de fato a entender, respeitar, saber como decifrar uma partitura do compositor, a sua hist�ria", ela explica.
Maria Jo�o Pires veio neste m�s ao Brasil para uma semana de resid�ncia art�stica e uma s�rie de tr�s concertos – em S�o Paulo, no Rio de Janeiro e em Belo Horizonte, onde se apresenta na noite deste s�bado (26) no Grande Teatro do Pal�cio das Artes. Beethoven a acompanha durante a viagem. Dele, ela toca as sonatas n.º 8 e n.º 13 – e o programa se completa com Chopin, de quem interpreta uma sele��o de noturnos.
Assim como Beethoven, Chopin � um companheiro de longo tempo na carreira de Maria Jo�o Pires. Os dois t�m import�ncia indiscut�vel em sua discografia, em uma lista � qual se somam Mozart, Schumann e Schubert. Com os cinco, ela fez maravilhas.
Comentando sua leitura do Concerto n.º 2 de Beethoven, um cr�tico do jornal The Guardian falou em uma maneira de tocar "intimista e repleta de nuances". Intimismo �, de fato, uma palavra-chave em suas leituras – seu CD com o violoncelista brasileiro Antonio Meneses � um testemunho bem-acabado do que a m�sica de c�mara tem a oferecer.
Ao mesmo tempo, ela � sempre capaz de surpreender. No New York Times, o cr�tico Allan Kozinn conta ter ido ouvir um recital com noturnos de Chopin � espera justamente de delicadeza e ter sa�do do teatro espantado com as "tempestades" que sa�am do piano, oferecendo uma leitura repleta de contrastes de obras c�lebres.
CANSA�O DO PALCO
H� muitas cr�ticas e adjetivos. Mas, nas �ltimas d�cadas, Maria Jo�o cansou-se do palco. Ao longo da carreira, suas raras entrevistas falam do desconforto em estar no palco. E, mais recentemente, resolveu fazer algo a respeito. Toca, mas cada vez menos. E prefere se dedicar ao ensino – e a uma nova proposta de rela��o com a m�sica.
"Estar em turn� � sempre um pouco cansativo", ela afirma, numa conversa por telefone, de Bogot�, onde fez o primeiro recital dessa viagem pela Am�rica Latina. "Aqui, estou um pouco ainda afetada pela altitude, o que torna as coisas mais dif�ceis. Mas estou muito feliz de voltar ao Brasil, estava j� com saudade." No in�cio dos anos 2000, Maria Jo�o Pires viveu nos arredores de Salvador, na Bahia, antes de se instalar na Su��a.
De volta � Europa, focou sua trajet�ria no ensino, formando turmas das quais saem artistas not�veis, entre eles alguns brasileiros, como Sylvia Thereza e Leonardo Hilsdorf. E, nos �ltimos dois anos, reviveu o projeto do Centro de M�sica de Belgais, em Portugal, onde a conviv�ncia entre artistas e o campo � o ponto de partida para uma percep��o diferente da arte e da m�sica, compartilhada com o p�blico.
� esse esp�rito que ela pretendia levar a Ilhabela, no complexo criado h� cinco anos para apresenta��es e tamb�m para resid�ncias art�sticas. E, se n�o gosta particularmente de dar entrevista, sobre o contato com jovens ela n�o poupa palavras.
"Transmitir conhecimento � o melhor que h� na vida. Mas n�o se trata do professor que ensina o aluno. O que busco � abrir um espa�o natural para que o di�logo aconte�a. Todo mundo aprende. N�o � uma aula, � um encontro, em que todos s�o livres." Para a pianista, o aluno muitas vezes � tomado por medos – do piano, do estudo, da carreira, do futuro. "Com medo, no entanto, n�o h� processo criativo. E, sem processo criativo, n�o h� arte", ela explica.
O objetivo, ent�o, � criar um espa�o no qual "n�o h� pensamento feliz ou infeliz", um espa�o "vazio, que possa ser preenchido com nossa verdadeira criatividade, por meio da conviv�ncia e da aceita��o e contato de cada um com sua capacidade". Segundo ela, "n�o h� hierarquias, n�o h� ambi��o, h� apenas a tentativa de entrar em contato com o aspecto misterioso da arte, de estabelecer um outro tipo de contato com o nosso universo."
E a conversa, ent�o, volta a Beethoven. Talvez porque, na sua maneira de ver a rela��o com a m�sica, a ideia de uma jornada pessoal � importante – e o mesmo pode-se pensar sobre Beethoven. Um exemplo: suas 32 sonatas para piano mostram justamente essa transforma��o pessoal pela qual passa o autor em sua vida.
"N�o foi de prop�sito, mas tocar a oitava e a �ltima sonatas no recital mostra exatamente isso", ela afirma. Em seguida, questionada sobre o que a fascina no compositor, ela faz uma pausa. "� t�o dif�cil colocar em palavras. Beethoven � quem liga a mat�ria ao esp�rito. � quem nos mostra que podemos viver uma vida material e, ao mesmo tempo, viver ideais muito fortes. H� nisso uma vis�o profunda do nosso universo, que n�o se explica. Mas se sente. � a� que entra o g�nio." (Estad�o Conte�do)
"Transmitir conhecimento
� o melhor que h� na vida. Mas n�o se trata do professor que ensina o aluno. O que busco � abrir um espa�o natural para que o di�logo aconte�a. Todo mundo aprende. N�o � uma aula, � um encontro, em que todos s�o livres"
Maria Jo�o Pires,
pianista