
''O apelo dos partidos populistas � sua promessa de uma vit�ria sem ambiguidades. Isso atrai os que veem na separa��o de poderes n�o uma maneira de controlar o poder, mas um �libi a que as elites recorrem para deixar de cumprir suas promessas eleitorais''
Ivan Krastev, cientista pol�tico
� da fase em que se via �s voltas com seus linossignos que Cassiano Ricardo escreveu Os sobreviventes. Ali est� a Pequena sauda��o ao ano 2000, s�rie de cinco poemas dedicada ao diplomata e amigo Jos� Guilherme Merquior. Ricardo, que, nas palavras de Oswald de Andrade, deslocara “a partida de xadrez da poesia brasileira” ao arriscar-se �s mais surpreendentes experi�ncias com a palavra, abre o segundo poema da s�rie com os versos: “�caro morreu,/ n�o por voar/ junto ao sol/ mas de obsoleto”. Os mitos de ent�o conversavam com o poeta na rua e o convidavam a assistir a Antonioni no cinema. Ele conclui com outros tr�s versos geniais uma antevis�o de nossos tempos: “Tudo o que foi/ ontem �/ outra era”.
O editor Heinrich Geiselberger tentou capturar esse tempo de crise e convidou 16 autores – cientistas pol�ticos, fil�sofos, jornalistas e escritores – para organizar a obra A grande regress�o: um debate internacional sobre os novos populismos e como enfrent�-los (Editora Esta��o Liberdade). Se compreender tudo o que foi ontem e a nova era � necess�rio para sobreviver, a tarefa desse livro � explicar como faz�-lo em um tempo em que o passado ainda n�o se foi e o amanh� ainda n�o se desnudou por completo, produzindo um interregno onde se verificam os fen�menos patol�gicos mais variados. Lembrar a famosa passagem dos Cadernos do c�rcere (Q 3,34), do pensador italiano Antonio Gramsci – autor elevado � condi��o de anticristo no Brasil pela direita populista e ultraconservadora –, ajuda a entender a crise e a consequente ascens�o de for�as pol�ticas identificadas com o nacionalismo em v�rios cantos do globo.
Dois dos autores do livro citam o texto de Gramsci: o soci�logo alem�o Wolfgang Streeck e o fil�sofo esloveno Slavoj Zizek. Eles associam a crise � fragilidade da ideologia liberal, que os eleitores de Donald Trump relacionam �s institui��es an�nimas, sem transpar�ncia, que regulam suas vidas em nome de um capitalismo global que fere a soberania de pa�ses, suas culturas e valores.
Perigos da
nova ordem
A crise de autoridade identificada por Gramsci com o interregno, o per�odo entre um reinado e outro em Roma, caracteriza-se pelo fato de as velhas camadas dirigentes n�o conseguirem mais desempenhar sua fun��o. O impasse n�o pode ser resolvido pela restaura��o do velho. � morte das velhas estruturas suceder� uma nova cultura e hegemonia, viabilizando grande atos. Mas � incerta como ser� essa nova ordem. O perigo trazido pela situa��o � a potencialidade obscura nela existente do surgimento de homens providenciais ou carism�ticos, que exploram os ressentimentos das identidades locais contra a ordem mundial.
Streeck define o per�odo como de extrema inseguran�a. Zizek v� como exemplo de alternativa para as for�as progressistas a ruptura da submiss�o ao liberalismo, identificado por ele na figura de Hilary Clinton no Partido Democrata, e o apoio ao socialista Bernie Sanders. Eis uma resposta n�o apenas ao anseio antiestablishment dos eleitores de Trump, que devem ser reconquistados, mas tamb�m � necessidade de adequa��o aos tempos de pol�tica antag�nica em que se vive.
O fil�sofo e os demais autores est�o de acordo sobre a crise da democracia liberal e a necessidade de as for�as progressistas dos mais variados pa�ses enfrentarem a regress�o comandada por governos como os de Donald Trump, Viktor Urban (Hungria), Recip Erdogan (Turquia) e Narendra Modi (�ndia). Jair Bolsonaro ainda n�o havia sido eleito quando a maioria dos autores escreveu seus textos – a �nica exce��o � o fil�sofo brasileiro Renato Janine Ribeiro.
''O Brasil n�o � um fracasso na igualdade, na justi�a social, na honestidade com o dinheiro o p�blico, mas um sucesso na desigualdade, na exclus�o social, na corrup��o''
Renato Janine Ribeiro, fil�sofo
O Brasil e a
corrup��o
No ensaio para a edi��o brasileira, Janine Ribeiro afirma que se denudou no pa�s tudo o que uma hist�ria predat�ria fizera contra nossas dimens�es trabalhista, social e ambiental. A desigualdade seria um projeto cuidadosamente nutrido de sociedade; e a corrup��o e o patrimonialismo, projetos “meticulosamente elaborados de Estado”. Corrup��o e desigualdade existiriam no pa�s porque foram planejadas. “O Brasil n�o � um fracasso na igualdade, na justi�a social, na honestidade com o dinheiro o p�blico, mas um sucesso na desigualdade, na exclus�o social, na corrup��o”, afirma.
� consenso tamb�m entre os autores do livro enxergar o neoliberalismo, com seu desmonte do estado de bem-estar social, como um “�caro obsoleto” e buscar a caracteriza��o dos populistas. A mais not�vel de todas elas � a do cientista pol�tico b�lgaro Ivan Krastev: “O apelo dos partidos populistas � sua promessa de uma vit�ria sem ambiguidades. Isso atrai os que veem na separa��o de poderes, t�o adorada pelos liberais, n�o uma maneira de controlar o poder, mas um �libi a que as elites recorrem para deixar de cumprir suas promessas eleitorais.”
Krastev mostra a pol�tica dessas agremia��es como uma sucess�o de tentativas de demolir o sistema de freios e contrapesos e colocar institui��es independentes, como a Justi�a, a imprensa e organiza��es da sociedade civil, sob seu controle. Essas caracter�sticas igualariam for�as t�o d�spares como as que sustentam o indiano Narendra Modi, Marine Le Pen na Fran�a e partidos como o alem�o AfD, o italiano Liga e parte do PSL, que fomentam a polariza��o pol�tica, a defesa do antiglobalismo e o negacionismo clim�tico em suas campanhas.
Para se opor a esses grupos, os autores reafirmam a universalidade dos direitos humanos e sociais para que fa�am sentido aos desiludidos com a globaliza��o, evitando a aposta na regress�o. Quer-se impedir que a defesa de pol�ticas identit�rias associadas ao liberalismo dos Clinton, de Tony Blair e de outros condene as for�as progressistas ao que consideram ser um abra�o fatal com Wall Street.
Foi a identifica��o do establishment � promo��o dos direitos de mulheres, negros e de imigrantes que levou, segundo a fil�sofa americana Nancy Fraser, � rea��o que busca negar esses direitos ao mesmo tempo em que golpeia as elites pol�ticas tradicionais.
O paradoxo da
democracia
Trata-se de sentimento alimentado pelo paradoxo – nas palavras de Krastev – das democracias liberais do p�s-guerra fria, no qual o avan�o dos direitos humanos e das liberdades individuais se fazia acompanhar pelo decl�nio do poder que os cidad�os tinham para mudar n�o somente os governantes, mas tamb�m as pol�ticas governamentais com seus votos.
Seguindo com as respostas �s fantasmagorias surgidas na crise, os autores defendem desde a cria��o de institui��es que globalizem a pol�tica (Zizek) ao velho retorno ao trabalho de base nos bairros populares (Robert Misk).
Apesar da quantidade de vozes, o livro n�o se transforma em uma babel de diagn�sticos e receitas contra a crise. H� certa unidade na obra. Nenhum dos autores cede � tenta��o f�cil de explicar a vota��o de populistas – vitoriosos ou n�o – como express�o da estupidez humana. Querem que a globaliza��o ou�a essas vozes sem que a efici�ncia econ�mica se imponha como darwinismo social. E, mesmo se Zizek aposta no antagonismo para enfrentar o populismo radical da direita, ele o faz em busca de uma nova universalidade que use a l�gica agon�stica como forma de superar as divis�es das v�rias identidades.
Janine Ribeiro p�de assim afirmar a esperan�a no processo civilizat�rio que conduz � vit�ria dos valores humanos que marcam a hist�ria, com a crescente aceita��o do outro em nossas vidas, prevalecendo sobre a vontade de destru�-lo. E assim tamb�m Zygmunt Bauman p�de enfatizar a recupera��o do di�logo para superar as fronteiras do discurso do “n�s contra eles” na esfera pol�tica de nossas vidas, aquela onde a partida da liberdade � jogada.
A coragem
do papa
A aposta do soci�logo polon�s falecido em 2017 lembra a de J�rgen Habermas, com seu agir comunicativo. Bauman, por�m, reconhece a dramaticidade da crise ao afirmar que o papa Francisco “�, talvez, a �nica figura p�blica com autoridade mundial” que teve a coragem de mergulhar “nas fontes mais secretas do mal, da confus�o e da impot�ncia dos dias atuais”. Tudo porque o pont�fice afirmou que s� existe uma palavra que se deve repetir incansavelmente: di�logo.
“Somos convidados a promover uma cultura do di�logo, procurando por todos os meios abrir inst�ncias para torn�-lo poss�vel e permitir-nos reconstruir o tecido social”, afirmou Francisco. N�o deixa de ser interessante um tempo em que intelectuais progressistas veem novamente no papado um aliado. Se o cristianismo oculto do te�logo Karl Rahner n�o � mais congelado pelos ventos g�lidos em Roma, Gramsci tamb�m n�o frequenta mais o inferno dos ap�statas na cidade eterna.
De fato, tudo o que foi ontem � outra era. (Estad�o Conte�do)

A GRANDE REGRESS�O
• Org: Heinrich Geiselberger
• Esta��o Liberdade
• 352 p�ginas
• R$ 59