
O Brasil tem dificuldade de se olhar no espelho
PAULO SCOTT
Marrom e amarelo, de Paulo Scott, leva para o universo liter�rio uma discuss�o que o Brasil n�o consegue fazer de maneira honesta desde que o vermelho incandescente da �rvore batizou esta terra habitada por ind�genas e colonizada por portugueses por meio da explora��o do saber e do trabalho de negros escravizados.
Filho de pai e m�e mesti�os, Paulo nasceu com a pele clara – o que permite que seja lido socialmente como branco –, tem irm�o de pele escura e primos loiros de olhos azuis. Muitas fam�lias brasileiras, como a do escritor porto-alegrense, contam com essa diversidade de fen�tipos, embora os integrantes tenham o mesmo sangue. “Meu pai � marrom, meu irm�o retinto. M�e e pai s�o mesti�os. M�e puxada para espanhola, um pouco de �ndio chileno, um pouco de italiano”, diz ele.
Talvez o nome de uma cor dado ao pa�s demonstre a sina desta terra em que a pele de quem a habita tem definido, em grande medida, se a pessoa vai viver ou morrer, rica ou pobre, letrada ou analfabeta. Marrom e amarelo trata da quest�o da mesti�agem e das identidades no Brasil, tendo como partida o ponto mais nevr�lgico do debate: as cotas raciais.
O romance apresenta a hist�ria de Federico e Louren�o – irm�os, respectivamente, de pele clara e cabelo liso e de pele escura e cabelo crespo, vindos de fam�lia mesti�a de classe m�dia. Nesta entrevista, Paulo Scott fala de seu novo livro e das contradi��es da sociedade brasileira, que, na quarta-feira, celebra o Dia da Consci�ncia Negra. Nesta segunda-feira (18) � noite, ele participa do projeto Sempre um Papo, em BH, ao lado do escritor Joca Reiners Terron.
O que o levou a escrever Marrom e amarelo?
Meus romances giram em torno da identidade. Em Ithaca Road (Companhia das Letras), escrevo sobre Narelle, uma australiana mesti�a de ingl�s com ind�gena maori. Em Vol�teis (Objetiva), o protagonista Fausto � um mesti�o argentino. No plot desse livro j� aparece parte do conflito. J� estava num poema do meu primeiro livro (Hist�rias curtas para domesticar as paix�es dos anjos e atenuar os sofrimentos dos monstros), em 2001. O Brasil tem dificuldade de se olhar no espelho e se ver como pa�s negro, de ancestralidade negra e ind�gena. Tenho aten��o � quest�o da identidade desde sempre. N�o s� � comunidade negra, mas tamb�m ind�gena. No Brasil, voc� tem pai retinto, mas diz que � branco se tem a pele mais clara. O Brasil se acha branco, mas n�o somos brancos para o resto do mundo.
A ideia que do Brasil branco vem de muito tempo, como podemos ver no objetivo de pol�ticas para branqueamento da popula��o brasileira.
Pol�tica p�blica do pa�s no final do s�culo 19. No in�cio do s�culo 20, fomos a Paris dizer que o Brasil seria branqueado. O governo s� deu educa��o para o povo em 1930. A ideia era que o negro n�o teria moradia e sa�de e com isso seria eliminado. Mas essa coisa de o Brasil ter vergonha de ser negro tem mudado nos �ltimos 10, 20 anos. � um movimento muito especial, de orgulho de negros e pardos. Pardos que se reconhecem como negros. Duvido que os dois racistas no Mineir�o se reconhe�am como negros (refer�ncia a dois torcedores do Atl�tico que xingaram e cuspiram no seguran�a F�bio Coutinho, dizendo: “Olha sua cor”). Eles n�o s�o brancos. T�m pele mais escura do que a minha. S�o descendentes de negros e ind�genas. Dois malucos, xingando o trabalhador. Mas o presidente endossa. Estamos caminhando para o conflito e toda sociedade vai perder com isso. Temos racistas no parlamento, que lutam contra as cotas. Mas, pela primeira vez, os pobres que tiveram acesso � universidade, a comunidade negra e ind�gena apresentam discurso articulado de enfrentamento. Mas a Paulista e os Jardins n�o querem gente preta do lado, quanto mais branco e rico, melhor. Querem que o trabalhador v� para a informalidade. Um desastre para o pa�s. Temos um enfrentamento in�dito.
O que voc� pretende em sua literatura ao apresentar personagens mesti�os?
� algo que me interessa. O Brasil seria mais forte se assumisse que somos negros e ind�genas. Numa composi��o kantiana, os estudantes alem�es entendem, desde crian�as, a diferen�a entre querer e desejar. Para querer, voc� precisa saber quem �, saber quais s�o seus limites. N�o ficar sonhando, fantasiando. O brasileiro n�o. Quer ser Cristiano Ronaldo, Neymar. Mas a pessoa n�o avan�a se n�o souber quem �. O brasileiro tem dificuldade de olhar para si mesmo. Mas a comunidade pobre, negra e ind�gena foi para universidade. As mulheres, em especial. Os l�deres homens ainda n�o conseguiram fazer isso. FHC esbo�ou essa quest�o quando disse ‘eu sou mesti�o’. No Brasil, a classe m�dia n�o quer ver pobre do lado, no aeroporto, na universidade, no restaurante. N�o quer ver nem gente pobre nem gente parda. A elite brasileira, e isso aprendi vivendo no Rio, quer manter o apartheid: manda o filho estudar na Europa, fala cinco l�nguas, manda dinheiro para fora do pa�s. � a turma do Leblon, dos Jardins e da Paulista. Essa turma da Paulista n�o declara o dinheiro de aluguel dos apartamentos, � um bando de sonegador apoiando S�rgio Moro. � a revolu��o da moralidade brasileira. Um bando de sonegador. O dono da Havan, mesmo, pegou dinheiro do PT para fazer uma coisa e fez outra. A elite brasileira � hip�crita e apoia a concentra��o de renda para que o pobre fique cada vez mais pobre. O DPVAT, mal ou bem, dava amparo a pobres. Havia pedidos com fraudes, mas isso poderia ser resolvido. As reformas trabalhista e da previd�ncia v�o aniquilar com os pobres, mas os pobres ainda n�o entenderam. O Brasil est� sendo destru�do. Os racistas est�o perdendo a vergonha de falar que s�o racistas.
Voc� fala das cotas raciais de uma perspectiva bem interessante, a partir de Federico, que vem de fam�lia negra, mas � lido socialmente como branco.
Federico tem identifica��o social branca e autoidentidade como pessoa negra. A m�e, quando teve dois filhos diferentes, n�o teve d�vida e disse: ‘Somos fam�lia negra’. Eu tenho irm�o de pele escura. Tenho primos-irm�os negros. O parlamento brasileiro n�o quer espa�o para o preto. A linguagem permite que possa se emancipar, enfrentar o rico, o patr�o, gerente do seu banco. As mulheres negras v�m com linguagem qualificada. Vi a Karol Conka, em uma entrevista na TV aberta. Ela come�ou a falar algumas coisas. Os homens brancos come�aram a ouvi-la e ficaram calados. A nossa elite � uma das mais cru�is do mundo. O que fazem com o Brasil � criminoso, n�o existe em lugar nenhum do mundo. E o governo permite que o brasileiro seja escravizado. A popula��o n�o v�, e isso � culpa � dos intelectuais, da imprensa, da elite econ�mica. A elite n�o quer dar o m�nimo.
Voc� parte de refer�ncias pessoais para escrever o romance. � interessante ver que Louren�o � que tem autoestima mais elevada, � socialmente querido, o mais enturmado e � amado por Federico.
Eles chegaram longe pela educa��o que o pai deles deu. O pai ocupa cargo importante socialmente. Meu pai foi o primeiro conselheiro negro do Internacional. Um cara negro que nunca baixou cabe�a para branco. Mas (o livro) n�o � a hist�ria da minha fam�lia. Parto da minha fam�lia para construir essa fic��o. Uma fam�lia negra que enfrenta o racismo altivamente. O irm�o mais branco tem essa raiva, sempre em f�ria. Mas ele n�o sabe o que � ser preto retinto, n�o � preto retinto. N�o sofre o que o irm�o sofre. Mas tem empatia, que branco n�o vai ter nunca. � o irm�o que ele ama. Trata o irm�o melhor do que ele pr�prio se enxerga. V� o irm�o de forma heroica. Federico j� olha para o pai dele com mais crueldade.
O movimento negro costuma pontuar que o racismo � um problema dos brancos. Para voc�, lido socialmente como branco, como foi escrever esse romance?
O livro tem recebido retorno muito forte dos leitores. � muito bom. N�o teve cobertura forte da m�dia no in�cio. A Folha de S. Paulo fez h� duas semanas. O Globo, da cidade onde morei, fez primeiro. O Zero Hora est� ecoando o livro agora. Ele ficou conhecido no boca a boca e veio em momento crucial. Debato a quest�o das cotas, com Federico na comiss�o, no terceiro cap�tulo. E olha que na comiss�o s�o s� pessoas pr�-cotas e antirracistas. Mas n�o significa posi��o un�ssona. Tem o colorismo. Participei de debate com duas estudantes negras que tinham vis�es diferentes sobre ter namorado branco. Uma menina escreveu e depois apagou o post que pedia aos leitores negros opini�o sobre Marrom e amarelo. Tem muitas manifesta��es na internet. Tem gente branca que diz que � a primeira vez que entende o neg�cio. Essa discuss�o tinha que ser aprofundada na fic��o. Autores retintos t�m trabalhos incr�veis e devem ser chamados para falar. Sou negro pardo e n�o sofro racismo. Fui falar em Harvard, Nova York, Oxford. O debate sobre o colorismo � muito importante na Am�rica e na Fran�a. Com a not�cia do livro se tornar p�blica, passaram a me chamar. Essa discuss�o ganhou o mainstream do mercado acad�mico e editorial. J� participei de debates com Ana Maria Gon�alves. Esse debate tem que ser ampliado. Os mesti�os brasileiros t�m que se assumir como negros e fortalecer a identidade negra. As pessoas est�o se identificando, nos EUA isso � cada vez mais forte. As pessoas se dizem ‘apaches’, ‘sou latino’. A afirma��o de identidade � muito necess�ria no mundo atual, em que est� prevalecendo o pensamento racista, elitista, branco e de extrema direita, de maneira muito forte.
Em todo o mundo...
Trump � muito racista e n�o tem vergonha de se dizer racista. Bolsonaro � racista expl�cito, veja a quest�o dos quilombolas, mas tem aquele parlamentar retinto ao lado dele. N�o se diz racista. Bolsonaro � racista porque nega o racismo. Ao negar o racismo, d� guarida e apoio psicol�gico a um bando de malucos. Aqueles dois do Mineir�o s�o mesti�os e est�o repercutindo o racismo contra a ancestralidade deles. Temos negros pardos brasileiros aplaudindo o discurso racista. O discurso da seguran�a cegou muita gente. Parte negra muito forte na fam�lia do meu pai votou em Bolsonaro por causa da seguran�a, para colocar corruptos na cadeia. O Mano Brown, mesmo, disse que na comunidade um n�mero importante de pessoas votaria Bolsonaro. As pessoas queriam seguran�a.
Fale um pouco sobre a sua escrita, que � muito �gil, quase o fluxo de pensamento.
Estreei velho na literatura, aos 34 anos. Tinha resolvido que o que importa n�o � habilidade, sofistica��o, mas a singularidade, a voz �nica que s� aquele autor pode dar. Venho com essa est�tica, essa dic��o desde o livro Ainda orangotangos. Esse fluxo, dic��o ininterrupta. Orangotango � bem escrito, mas � estranho. Estou ficando velhinho. Tenho 53 anos e as pessoas entenderam tenho dic��o, minha voz pr�pria. Ali�s, isso est� entendido desde o come�o. Tanto que tenho espa�o nas editoras. Tenho essa dic��o: ‘Ele escreve assim. � o jeito dele’. Marcelo Rubens Paiva, um grande amigo, diz: ‘Quebra par�grafo, coloca pontua��o’. Sabe aquele m�sico que toca de um jeito muito estranho? � o defeito do cara. � a marca do cara. Esse � o meu jeito. N�o estou me comparando, ele � um g�nio, mas olha a afina��o de viol�o do Jorge Ben. Estou h� quase 20 anos como autor publicado. Gosto de escrever desse jeito. Paulo Scott escreve estranho, mas � o jeito dele.
Isso � muito bom, porque h� certa satura��o de um jeito de escrever e entender a literatura.
Sim. Clone da literatura americana contempor�nea. Estou muito feliz por grandes casas liter�rias se abrirem para a diversidade, mas por causa de um fluxo mundial. Muitas estrelas negras no mainstream. Vejam Chimamanda (Chimamanda Ngozi Adichie, feminista e escritora nigeriana). Aqui no Brasil, cr�ticos na Folha de S. Paulo aplaudem a vers�o brasileira da Granta, revista inglesa. A lista de todos os escritores, n�o estou me lembrando de todos agora, tirando o Jatob�, todos s�o autores brancos – sendo que, para os padr�es cariocas, o Jatob� tamb�m � considerado uma pessoa branca. D� para dizer que naquela sele��o falta diversidade racial maior. Por�m, o resenhista escreveu com felicidade que autores escrevem sem regionalismo. Como se fosse virtude ser gen�rico urbano, branco brasileiro. � retrocesso.
A sele��o reuniu textos de 20 autores com menos de 40 anos. Foi em 2012.
A quest�o aconteceu em outro momento, a composi��o da Granta hoje seria diferente. De qualquer forma, as narrativas da revista, independentemente da composi��o �tnica dos escritores, s�o muito de classe m�dia alta, instru�da. Tirando o texto do Jatob�, pelo que me lembro, falta diversidade maior. Tenho certeza de que se a Granta fosse sair hoje, seria de outra forma. Naquela Granta, tem uma coisa que mais me chama a aten��o: Santiago Nazarian ter ficado de fora. Ele participou e mandou texto. De uma forma mais sint�tica, sem querer ser leviano e fazer cr�tica mais apressada de processo do qual participei e � bem mais complexo, se hoje a revista acontecesse, ela teria outra composi��o se pegasse os romancistas mais jovens. Naquela sele��o falta diversidade racial. Ela teria outra composi��o. Mostra como o mercado editorial brasileiro mudou nesses �ltimos cinco anos.
Em Ainda orangotangos, voc� j� fala da quest�o do racismo. H� diferen�a de abordagem em rela��o a Marrom e amarelo?
A diferen�a entre os dois livros � o tratamento do racismo no Ainda orangotangos. Embora sejam contos, de estrutura diferente do romance, o racismo n�o ocupa o centro da narrativa. Apenas de um conto. N�o condiciona tanto o que caracteriza aquele livro. Mesmo no livro de poesia Senhor escurid�o (Bertrand), o racismo n�o � presen�a absoluta, divide espa�o com outras tem�ticas, embora haja pelo menos 20% de poemas ali que tratam direta ou indiretamente de racismo. � um pouco dif�cil dizer a t�nica da abordagem, na verdade s�o muitas quest�es que acabam me determinando na escrita. O racismo � s� uma delas. Mesmo em Marrom e amarelo, n�o � s� a presen�a do racismo. Uma coisa que o distingue de todos os outros � que ele tem o prop�sito de trazer o racismo para o centro da trama e pautar a narrativa. Os outros livros n�o t�m isso t�o central. Mas em Ainda orangotangos h� um conto centrado na tem�tica do racismo. O romance Vol�teis tem uma personagem coadjuvante, o Machadinho, um pardo claro, que tem conversa com a av� negra retinta no Parque Farroupilha, em Porto Alegre. Pelo menos no trecho do romance, a quest�o � muito central. Embora nenhum dos dois fale de racismo, tem essa reflex�o. A t�nica do Ainda orangotangos s�o as pessoas marginalizadas em v�rios graus, n�o � s� a quest�o racial, mas a quest�o de depress�o, do estado lim�trofe, do borderline psicol�gico e ps�quico. Tem muita loucura e muita viol�ncia. Orangotangos � um livro de contos girando em torno de pessoas lim�trofes em rela��o � sa�de mental, muito vis�vel naquele livro, o que n�o � t�o forte em outros livros que escrevi.

MARROM E AMARELO
. De Paulo Scott
. Alfaguara
. 157 p�ginas
. R$ 49,90
. R$ 34,90 (e-book)
. Os escritores Paulo Scott e Joca Reiners Terron participam do projeto Sempre um Papo, nesta segunda (18), �s 19h30, na Sala Juvenal Dias (Av. Afonso Pena, 1.537, Centro). Entrada franca.