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Estado de Minas

Saiba por que o cinema prefere usar mulheres em pap�is obsessivos

Especialistas em cinema e psican�lise comentam o uso da obsess�o pela s�tima arte a partir da estreia de 'O homem invis�vel', nesta quinta (27)


postado em 27/02/2020 04:00 / atualizado em 26/02/2020 19:37

Elisabeth Moss interpreta uma mulher que tem a certeza de ser perseguida por seu parceiro abusivo, mesmo depois da morte dele, em O homem invisível(foto: Universal Pictures/Divulgação)
Elisabeth Moss interpreta uma mulher que tem a certeza de ser perseguida por seu parceiro abusivo, mesmo depois da morte dele, em O homem invis�vel (foto: Universal Pictures/Divulga��o)

Como diria Caetano Veloso, “de perto ningu�m � normal”. Toda sanidade � question�vel. Ser�? N�o � de hoje que o cinema se dedica a desenvolver tramas psicol�gicas, com personagens obsessivos, angustiados, em sofrimento mental, com vidas suspensas, realidade afetada, vivendo o dilema da n�o aceita��o. Em geral, num filme assim, algu�m do outro lado da hist�ria corre perigo.

Nesta semana, o circuito de salas de Belo Horizonte exibe ao menos dois longas que colocam o espectador em a d�vida se os dramas experimentados por seus protagonistas t�m ou n�o lastro na realidade. O homem invis�vel, que estreia nesta quinta-feira (27), traz Elisabeth Moss (The handmaid's tale) como Cecilia Kass,  uma mulher envolvida com um parceiro abusivo e certa de que continua sendo perseguida por ele, mesmo depois de sua morte. O roteiro de Leigh Whannell � adaptado do romance hom�nimo de H. G. Wells. Lan�ado em 1897, o livro relata o experimento de um cientista �tico que consegue se fazer invis�vel.

No longa s�rvio Cicatrizes, de Miroslav Terzic, que segue em cartaz, Ana (Snezana Bogdanovic) tenta obsessivamente provar que seu filho, dado como morto ao nascer, na verdade foi sequestrado. Ao insistir nessa vers�o, ela entra em conflito com praticamente todas as pessoas e entidades – pol�cia, hospital – com quem precisa interagir.

Narrativas em que h� um her�i (ou anti-her�i) obcecado com algo ou algu�m, com sentimentos compulsivos e sendo perseguido (ou perseguindo) costumam ter alto potencial de envolver o espectador, seja por provocar identifica��o, estranhamento ou mesmo pelo peso da hist�ria. Para o professor de teoria e hist�ria do cinema na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Luiz Nazario, “a paranoia � tema interessante, porque h� sempre a d�vida: � conspira��o ou n�o? � loucura ou n�o? A ambiguidade da situa��o atrai o espectador”.

Tamb�m cr�tico de cinema, Nazario ressalta que a ades�o a essas tramas se deve ao fato de que “o problema da loucura � ver uma realidade recortada pela doen�a. O que enriquece o filme e deixa a hist�ria mais interessante. A personagem n�o � 100% normal, mas, ao mesmo tempo, ocorrem coisas anormais em torno dela. Pano para a complexidade”.

''Os filmes t�m, sim, o papel de questionar a realidade para projetar outra imagem, ainda que seja uma felicidade clandestina, exibindo a realidade com outro olhar. Necessitamos classificar este mundo com lanternas, urgentemente, come�ar do marco zero''

Ata�des Braga, professor e cr�tico de cinema


Ele v� uma conex�o entre essa abordagem e a atual sociedade tecnol�gica invadida pelo fen�meno das fake news: “O mundo � fluido. As pessoas acreditam no mundo da p�s-verdade, verdades que n�o s�o reais. Teoria da conspira��o, terraplanismo... Para (o ensa�sta) Olavo de Carvalho, fumar n�o faz mal. Temos campanhas contra a vacina. Vivemos em uma realidade invertida, com a cria��o de bolhas ideol�gicas com uma vis�o de mundo fechada onde a realidade n�o penetra mais”. Nesse contexto, tramas sobre realidades distorcidas ganham resson�ncia.

O fato de que tanto O homem invis�vel quanto Cicatrizes tenham mulheres como protagonistas n�o parece aleat�rio para Nazario. “Ainda que tenhamos homens protagonizando hist�rias assim, mulheres e crian�as aparecem com mais frequ�ncia porque s�o mais fr�geis e criam maior identifica��o. Com o homem, h� sempre uma certa desconfian�a”, diz.
 
Ele cita outro exemplo: em Plano de voo (2005), de Robert Schwentke, Jodie Foster vive a engenheira Kyle Pratt, que est� a caminho de casa, num voo da Alemanha para Nova York, onde seu marido acaba de morrer. Kyle cai no sono e, quando acorda, n�o encontra sua filha. A partir da�, todos na aeronave sustentam que a crian�a nunca embarcou, questionando a sanidade da engenheira.

O professor e cr�tico cita tamb�m um exemplo de obsess�o coletiva registrado na s�rie documental Wild wild country (2018), dos irm�os Chapman e Maclain Way, que reconstitui a hist�ria do guru Osho e seu projeto de construir uma cidade ut�pica no deserto do Oregon. “Uma s�rie fant�stica, feita com reportagens da �poca, mostrando a cria��o de uma cidade com leis de uma realidade pr�pria, com as pessoas criando uma realidade � parte, numa sociedade totalit�ria”. A s�rie est� dispon�vel na Netflix.

Snezana Bogdanovic é a mãe que tenta provar que o filho não morreu, mas sim foi sequestrado, no longa sérvio Cicatrizes(foto: Arteplex Filmes/Divulgação)
Snezana Bogdanovic � a m�e que tenta provar que o filho n�o morreu, mas sim foi sequestrado, no longa s�rvio Cicatrizes (foto: Arteplex Filmes/Divulga��o)
A investiga��o da psique humana � um tema que instiga especialistas e curiosos e ao qual o cinema n�o se furta. “O cinema e a psican�lise nasceram praticamente juntos, no final do s�culo 19. Assim, muitos te�ricos do cinema usaram a refer�ncia da psican�lise como a teoria da interpreta��o dos sonhos”, afirma Ata�des Braga, professor, cineasta, historiador e pesquisador.

“Nas minhas pesquisas, Freud (1856-1939) n�o gostava tanto do cinema, da apresenta��o do inconsciente na representa��o f�lmica. Um filme surrealista dos anos 1920, como Um c�o andaluz (1929), fruto da parceria de Luis Bu�uel e Salvador Dal�, vanguardista, era para ele pura alucina��o. Ele n�o entendia. Mas era baseado nos conceitos da psican�lise freudiana.”

O professor cita outros mestres da psican�lise que foram parar na telona como personagens ou por meio da aplica��o de suas teorias a personagens emblem�ticas. A S�verine (Catherine Deneuve) de A bela da tarde (Luis Bu�uel, 1967), por exemplo, est� intimamente ligada ao pensamento de Jacques Lacan (1901-1981). “Lacan dizia que toda paciente dele com algum tra�o de sofrimento provocado por abuso deveria, antes de mais nada, assistir a esse filme. Fazia parte do tratamento.”

''A paranoia � tema interessante, porque h� sempre a d�vida: � conspira��o ou n�o? � loucura ou n�o? A ambiguidade da situa��o atrai o espectador''

Luiz Nazaria, professor e cr�tico de cinema

Braga menciona ainda Um m�todo perigoso (2011), de David Cronenberg, “que mostra como a rela��o entre Carl Jung (Michael Fassbender) e Sigmund Freud (Viggo Mortensen) faz nascer a psican�lise. E aborda a intensa e pol�mica rela��o da dupla com a paciente Sabina Spielrein (Keira Knightley). � o uso do cinema para discutir a realidade”.

Freud al�m da alma (John Huston, 1962), com roteiro (n�o creditado) de Sartre, e ainda o recent�ssimo Coringa (2019), de Todd Phillips, que deu a Joaquin Phoenix o Oscar de melhor ator, s�o dois outros exemplos apontados por Braga.

“Existe esta linha do cinema on�rico, experimental. O que seria minha primeira reflex�o sobre o processo de cria��o de personagens obsessivos, paranoicos e compulsivos. Filmes que abra�am quest�es psicanal�ticas e que criam uma realidade � parte. Tudo isso � sintoma de nossa realidade, n�o de agora, mas de muitos anos. � poss�vel falar ainda em Bacurau (Kleber Mendon�a Filho e Juliano Dornelles, 2019), em que as pessoas ou uma sociedade estranha e recortada passa a acreditar em um indiv�duo que beira a anomalia social, apatia.”

Na opini�o do professor e cr�tico, “os filmes t�m, sim, o papel de questionar a realidade para projetar outra imagem, ainda que seja uma felicidade clandestina, exibindo a realidade com outro olhar. Necessitamos classificar este mundo com lanternas, urgentemente, come�ar do marco zero. Por isso precisamos de um cinema que choque, que cause mal-estar no senso comum, que retrate a psicopatia, a viol�ncia do ass�dio, surtos, enfim, fen�menos sociais que s�o frutos das condi��es da atual sociedade e que t�m de ser combatidos”.

Para a psic�loga e psicoterapeuta familiar sist�mica Cl�udia Prates, atualmente, constata-se o exagero da individualidade, “o baixo investimento na conquista, na constru��o de rela��es pr�ximas, profundas, verdadeiras e, consequentemente, mais trabalhosas. O ajuste com a realidade comum (compartilhada) exige aten��o, presen�a e movimento, j� que a mesma n�o se mant�m est�tica e control�vel”.

''A aceita��o do real nos compromete com atitudes compat�veis com ele e que, muitas vezes, n�o combinam com o desejo pessoal. A busca 'enlouquecida' pela satisfa��o desconhece limites e ignora consequ�ncias''

Cl�udia Prates, psic�loga e psicoterapeuta familiar sist�mica

A psicoterapeuta afirma que “filmes baseados em traumas, em viv�ncias sofridas com 'solu��es' descabidas, despertam o interesse do p�blico por fornecer emo��es ausentes no cotidiano e abrir chance de realiza��es virtuais. Mulheres desamadas, frustradas, do�das se transformam em f�bicas, obsessivas, dotadas do poder que lhes falta em suas vidas. S�o guiadas por uma realidade particular, distorcida e desejada (n�o realizada). A aceita��o do real nos compromete com atitudes compat�veis com ele e que, muitas vezes, n�o combinam com o desejo pessoal. A busca 'enlouquecida' pela satisfa��o desconhece limites e ignora consequ�ncias”.


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