Em novo �lbum, Fiona Apple reflete estranho 2020

Ao anunciar que Fetch the bolt cutters estava pronto, ainda no in�cio de mar�o, quando a pandemia do novo coronav�rus ainda n�o tinha confinado grande parte do mundo, Fiona Apple certamente n�o tinha consci�ncia do quanto suas novas m�sicas refletem este estranho 2020.

Respons�vel por quebrar um jejum de quase oito anos, o trabalho foi gravado em casa, re�ne m�sicas criadas a partir de percuss�es facilmente produzidas com objetos dom�sticos e conta com os ilustres latidos dos amados c�es da cantora – Mercy, Maddie, Leo e Alfie –, que est�o creditados na ficha t�cnica do disco como "backing barks", ou "latidos de apoio", em alus�o aos backing vocals.

O t�tulo, que pode ser traduzido como "peguem os alicates", Fiona retirou de uma cena da s�rie The fall (BBC Two), na qual a protagonista, vivida pela atriz Gillian Anderson, encontra uma sala de tortura e precisa arrombar a porta para entrar. O nome tamb�m revela um pouco do que a cantora fez desde que lan�ou o celebrado �lbum The idler wheel..., em 2012. Na �poca, ela cancelou a turn� sul-americana, al�m de tr�s shows no Brasil, para cuidar da cadela Janet, que sofria de c�ncer no peito e, posteriormente, veio a falecer.

Ap�s extenso per�odo de luto, Fiona Apple se recomp�s e est� mais afiada do que nunca. Sens�vel, sincera e, ao mesmo tempo, agressiva e po�tica, ela agora n�o � mais a adolescente problem�tica do final dos anos 1990, que estourou aos 19 anos com o disco de estreia, Tidal (1996). Aos 42, encara a vida de uma outra forma, sem namorados famosos ou a persegui��o de tabloides sedentos por qualquer deslize, o que lhe tem permitido uma cria��o musical repleta de tem�ticas claramente pessoais, mas que ganham tratamento t�o metaf�rico que passam a servir para qualquer situa��o da vida de qualquer pessoa.

Como no caso de I want you to love me, faixa de abertura do Fetch the bolt cutters, na qual a letra fala, em linhas gerais, sobre um amor n�o correspondido. Ironicamente, a primeira frase do disco talvez seja a que melhor traduza o sentimento dos f�s da cantora: "I've waited to many years", ou "eu esperei tantos anos", em tradu��o livre. De cara, Fiona j� crava duas de suas qualidades incompar�veis: o canto e o talento como pianista.

Shameika, a m�sica seguinte, de execu��o r�pida e a mais pop do trabalho, apresenta o refr�o chiclete Shameika said i had potential. Afinal, Shameika estava certa e Fiona prova isso na can��o que d� nome ao disco, na qual exercita sua po�tica raivosa em versos complexos cheios de sarcasmo – com os vocais de apoio da atriz e modelo brit�nica Cara Delevingne.

Em Under the table, Relay, Rack of his, Newspaper e Ladies, ela continua sua jornada verborr�gica ao som do blues, ora evocando os versos em falsetes in�ditos, ora amargando relacionamentos que n�o deram certo em polifonias experimentais.

Apesar de n�o ser a m�sica-t�tulo do disco, Heavy ballon, a oitava faixa, resume muito do trabalho, da pr�pria vida da int�rprete e do momento que estamos vivendo. Nela, Fiona Apple metaforiza a depress�o sob a forma de um "bal�o pesado". "Pessoas como n�s ficam t�o pesadas e perdidas que o fundo do po�o � o �nico lugar que conseguimos encontrar/Somos arrastados para l� tantas vezes seguidas, que ele come�a a parecer o �nico lugar seguro", canta ela.

Como boa millenial, em Cosmonauts ela aborda a descren�a em relacionamentos monog�micos. Na faixa For her, Fiona cria o hino perfeito que o movimento MeToo n�o teve. Vale lembrar que a cantora nunca temeu ser estigmatizada por falar abertamente de seus problemas pessoais, at� mesmo os traumas sexuais e o v�cio em drogas.

A personalidade forte, al�m de torn�-la uma esp�cie de diva da m�sica alternativa, j� lhe rendeu alguns preju�zos, como na vez em que brigou com os integrantes de sua banda, o que ela conta em Drumset. Para finalizar a jornada de pouco mais de 50 minutos de Fetch the bolt cutters, a cantora entrega, em On i go, uma esp�cie de mantra que ela assume evocar quando precisa se acalmar.

Simples, constru�do basicamente com piano, baixo e bateria (com exce��o de algumas inser��es sutis de guitarras, teclados e percuss�es), o disco de Fiona Apple ganhou a cr�tica internacional logo de cara. A b�blia indie Pitchfork atribuiu uma rara nota 10 ao disco, o que, para se ter no��o, ocorreu pela �ltima vez em 2010, quando Kanye West lan�ou My dark and twisted fantasy.

Muito al�m de qualquer qualidade t�cnica e po�tica que, de fato, possui, Fetch the bolt cutters talvez venha a ser considerado o disco do ano por ser um �lbum sobre se confinar, seja dentro de casa, dentro de um relacionamento que n�o d� certo, dentro de problemas de sa�de mental ou dentro da pr�pria cabe�a.

Como solu��o, Fiona decide traduzir esses estados de esp�rito em m�sica, de uma maneira que a compara��o com Bob Dylan ou Joni Mitchell � inevit�vel, ainda que com esse trabalho ela tenha esclarecido, de uma vez por todas, que Fiona Apple � a Fiona Apple dos nossos tempos.