
Quando Fl�vio Moura e Andr� Conti, editores da Todavia, perguntaram a Chico Felitti se ele queria escrever um livro sobre Jo�o de Deus, a resposta imediata foi “n�o”. O jornalista e autor de Ricardo e V�nia n�o tinha interesse algum no personagem. Os editores propuseram, ent�o, que ele fosse at� Abadi�nia e encontrasse um recorte da hist�ria do m�dium. “E eu enlouqueci”, conta Felitti.
Em Abadi�nia, o escritor se deparou com duas cidades. Uma pobre e cat�lica, de um lado da BR-060, e a outra rica e badalada, conhecida como Lindo Horizonte. Ali funcionava a Casa Dom In�cio de Loyola, o centro no qual Jo�o de Deus atendia, fazia as cirurgias espirituais e cometia as agress�es sexuais pelas quais acabou preso depois de denunciado e julgado entre 2018 e 2019.
O resultado da investiga��o de Felitti est� em A casa, lan�amento da editora Todavia, j� dispon�vel nas plataformas on-line e em e-book. “Era um lugar t�o peculiar, fora do tempo e do espa�o, que n�o fazia sentido nenhum ali, num peda�o de cerrado pobre, com a cidade cat�lica de um lado e do outro a cidade da seita. Era muito diferente e a BR � um fosso mesmo: descobri que mal havia contato entre as duas partes”, detalha Felitti. “Eu era muito de fora desse universo e fiquei muito embasbacado.”
O rep�rter fez da casa na qual o m�dium atuava o personagem central do livro. Para ele, a apura��o parecia ser bastante f�cil. Em uma cidade de 20 mil habitantes, pensou Felitti, todo mundo teria hist�rias para contar, j� que as den�ncias de crimes sexuais cometidos por Jo�o de Deus acabavam de ser reveladas. O jornalista desembarcou em Abadi�nia em janeiro de 2019, pouco mais de um m�s ap�s as primeiras den�ncias terem sido feitas no programa de entrevistas de Pedro Bial. A apura��o, no entanto, n�o foi nada f�cil. “Era uma cidade muito em choque com o que tinha acontecido”, conta. “As pessoas eram muito ressabiadas com a imprensa e foi dif�cil encontrar grupos de pessoas que me ajudassem a vencer essa parte da hist�ria. Consegui por repeti��o, fui v�rias vezes. Foi uma contamina��o muito lenta e sou muito grato � generosidade das pessoas, que foram se abrindo.”
Em dezembro de 2019, Jo�o Teixeira de Faria, conhecido como Jo�o de Deus, foi condenado a 19 anos e 4 meses de pris�o por crimes sexuais cometidos contra quatro mulheres, embora haja mais de 100 den�ncias registradas contra o m�dium. Al�m dos ass�dios, h� tamb�m condena��o por porte ilegal de armas. Durante a pesquisa para A casa, Chico Felitti esbarrou ainda em outras suspeitas. No livro, acidentes e assassinatos que eliminaram desafetos do personagem entram numa conta de suspeitas que revelam a rede de poder que ajudou a proteger Jo�o de Deus da Justi�a durante quatro d�cadas.
Den�ncias
Uma das coisas mais chocantes com a qual Felitti se deparou durante a apura��o foi a quantidade de den�ncias conhecidas de todos. “Era uma trag�dia anunciada”, conta. “Achei que tivesse ineditismo na hist�ria e, quando cheguei � cidade, descobri que tinha den�ncia de ass�dio desde 1979, que havia a hist�ria do avi�o que explodiu, den�ncia de tr�fico de material radioativo, coisas que j� tinham chegado ao poder (p�blico) de alguma maneira, e tinham vazado mesmo pela cidade. O que mais me chocou foi que essa monstruosidade j� existia e era denunciada, conhecida e n�o foi suficiente para a sociedade barrar um criminoso.”
Uma das passagens mais impressionantes do livro � o depoimento de uma das v�timas, cujo nome foi trocado a pedido da entrevistada. Ela conta com detalhes como os abusos ocorriam e revela o medo de ser julgada como boba e inocente, uma postura comum para desqualificar as agress�es sofridas. Muitas das v�timas trabalhavam na Casa e estavam t�o doutrinadas que acabavam por acreditar que os estupros e abusos faziam parte do tratamento. Outras tinham medo de que o m�dium invocasse esp�ritos para persegui-las, ou temiam at� pela pr�pria vida, j� que h� relatos de amea�a por parte de Jo�o de Deus. “Existia uma rede de poder e um fator que se chama f�. As pessoas acreditavam que havia milagre”, lembra Felitti. Os �ltimos cap�tulos, ali�s, s�o dedicados �s den�ncias e � descri��o de como se deu a for�a-tarefa de minist�rios p�blicos de todos os estados do Brasil que receberam liga��es de v�timas.
No livro, o rep�rter tamb�m refaz a trajet�ria de Jo�o de Deus, que passou por v�rios estados antes de se instalar em Abadi�nia, e do desenvolvimento da Casa Dom In�cio de Loyola, que movimentava a economia local e empregava mais de 500 pessoas na cidade. Al�m desse centro, Jo�o de Deus, que tamb�m era dono de garimpo e de uma fazenda de cria��o de gado, mantinha a Casa da Sopa, na qual distribu�a sopa de gra�a, e a Casa do Banho, destinada � higiene de quem procurava sua ajuda.
RECEIOS
A narrativa de Chico Felitti � sempre muito generosa. Ele n�o hesita em colocar bastidores da apura��o da reportagem e fala, inclusive, sobre seus pr�prios receios. Jo�o de Deus n�o era uma figura totalmente estranha ao universo do jornalista. Em 2014, ele teve um problema de sa�de para o qual foi sugerida uma consulta com o m�dium, mas Felitti preferiu a medicina tradicional, que o curou. Ele tamb�m ficou apreensivo diante de hist�rias contadas pelos entrevistados sobre poss�veis maldi��es do curador sobre rep�rteres que tentavam aprofundar as den�ncias.
Quando o marido de Felitti ficou gravemente doente, ele se perguntou se n�o seria praga. Um dia, o rep�rter sofreu um acidente inusitado ao cair dentro de um esgoto enquanto andava e, certa vez, se deparou com os computadores da Biblioteca Nacional pifados justamente no momento em que precisava realizar uma pesquisa para o livro. “E tem hist�rias que ficaram de fora, como a de uma grande rep�rter que admiro e que teve uma doen�a grave que ela atribui a uma mat�ria de den�ncia”, garante. “N�o posso esconder esses fatos do leitor porque s�o not�veis. Mas sou ateu, tendo a achar que s�o coincid�ncias. � um esfor�o consciente para dizer que s�o coincid�ncias.”

A CASA
. De Chico Felitti
. Todavia
. 264 p�ginas
. R$ 47,92