O ator alem�o Gert Voss interpreta Rei Lear, em montagem dirigida pelo su��o Luc Bondy e apresentada em Viena, em 2007
Herwig Prammer/Reuters
“Estes recentes eclipses do Sol e da Lua n�o nos pressagiam nada de bom”, diz o Conde de Gloucester em uma das primeiras cenas de “Rei Lear”, pe�a de William Shakespeare. A fala do personagem sugere o desenrolar da trama escrita no in�cio do s�culo 17.
De fato, na pe�a, um rei um tanto ou quanto fanfarr�o, cheio de rompantes de f�ria e meio descontrolado, abdica do trono e divide o reino entre as tr�s filhas, com uma �nica condi��o: elas devem fazer uma declara��o de amor para ele.
As mais velhas, Goneril e Regan, logo tomam a palavra e, num lirismo singular, exaltam o pai, colocando-o como o �nico motivo de satisfa��o em suas vidas. A ca�ula, Cordelia, por sua vez, vai na contram�o das irm�s. Ela garante seu amor, mas pondera dizendo que n�o precisa bajular ningu�m para mostrar seu sentimento.
A resposta de Cordelia - talvez a mais sincera entre as filhas - foi como uma bala de prata no ego do pai. E, claro, n�o agradou nem um pouco o monarca, que, num acesso de f�ria, deserdou a ca�ula e dividiu o reino entre Goneril e Regan.
Assim como toda a obra de Shakespeare, “Rei Lear” se tornou atemporal por abordar com maestria quest�es centrais da experi�ncia humana, como gan�ncia, individualismo, justi�a social, moral e �tica.
Contradi��es
Lear, o rei que abdicou do trono, � apenas um dos personagens que acumulam em si todas essas quest�es. Ao abrir m�o do poder, sua ideia era deixar de lado as responsabilidades da realeza, mas continuar desfrutando das regalias do cargo.
� isso, inclusive, que motiva sua briga com Goneril e Regan. Ainda nos primeiros atos, ele expressa �s duas seu desejo de manter um ex�rcito particular de 100 homens, algo completamente fora de cogita��o em um sistema pol�tico cuja base sempre foi a manuten��o de um �nico ex�rcito, e n�o mil�cias espalhadas pelo reino.
As filhas Goneril e Regan tamb�m carregam em si as contradi��es e dilemas, nas suas devidas propor��es, similares aos do pai. Ao ascenderem ao trono, refutam a ideia de Lear levar consigo homens armados e justificam isso a ele, evidenciando seu comportamento descontrolado e seus acessos de f�ria injustific�veis.
No entanto, ao longo da pe�a, as duas v�o se perdendo em maldade - sobretudo em suas atitudes para com o pai - e fazendo de tudo para expandir o pr�prio poder, visto por elas como uma forma de afirma��o individual.
Paralelamente, h� uma segunda trama. Edmund, filho bastardo e mais novo do Conde de Gloucester arma um atentado contra a vida do pai e do irm�o, a fim de herdar o t�tulo e as riquezas da fam�lia. Em seguida, disputa o amor das duas princesas, colocando-as na condi��o de rivais.
J� Cordelia, que parece ser uma boa pessoa e a personagem mais sensata da trama, coloca-se muitas vezes em situa��es nas quais se cala para n�o externar nenhum sentimento ruim.
Rodrigo Lacerda fez quest�o de publicar explica��es sobre Shakespeare e sua �poca no posf�cio do livro
Renato Parada/Divulga��o
'O mundo n�o para pra ouvir o sil�ncio. As coisas v�o acontecendo e, muitas vezes, Cordelia n�o reage � altura dos acontecimentos. Com sua recusa em fazer a declara��o ao pai, por exemplo, por melhores que tenham sido suas inten��es, ela n�o cumpre o ritual da corte, revelando-se imatura para governar'
Rodrigo Lacerda, tradutor e escritor
“Esse sil�ncio ter� um pre�o”, afirma o escritor e tradutor Rodrigo Lacerda, respons�vel pela mais recente tradu��o de “Rei Lear”, lan�ada no final de 2022 pela Editora 34, em edi��o bil�ngue.
“O mundo n�o para pra ouvir o sil�ncio. As coisas v�o acontecendo e, muitas vezes, Cordelia n�o reage � altura dos acontecimentos. Com sua recusa em fazer a declara��o ao pai, por exemplo, por melhores que tenham sido suas inten��es, ela n�o cumpre o ritual da corte, revelando-se imatura para governar”, diz ele.
“Afinal, o monarca tem que falar a linguagem do cerimonial, tem que cumprir os rituais. N�o pode dizer: ‘Ah, eu sou rei, mas sou um rei legal; por isso n�o quero nenhuma formalidade’. N�o d�. O mundo do poder exige certo decoro e formaliza��o das coisas”, observa.
“Rei Lear” j� havia sido traduzida para o portugu�s por Carlos Alberto Nunes (1897-1990), Mill�r Fernandes (1923-2012), Barbara Heliodora (1923-2015) e Lawrence Flores Pereira. Embora considerasse todas essas tradu��es boas, Lacerda n�o se identificava com nenhuma delas. “Na minha boca elas n�o encaixavam direito”, comenta.
Come�ou, ent�o, traduzindo alguns trechos para apresentar a eventuais alunos quando fosse convidado a dar aulas sobre o texto de Shakespeare, algo que � recorrente em sua rotina. “Mas a� veio a pandemia, e eu me vi trancado dentro de casa, nos Estados Unidos, porque minha esposa tinha ido para l� estudar, e eu fui com ela, e sem nada para fazer. Ent�o mergulhei de cabe�a nesse projeto”, diz.
Foi, de fato, uma imers�o na pe�a de Shakespeare. Por vezes, a esposa de Lacerda o ouvia gritando e corria assustada at� ele para ver se estava tudo bem. Quando chegava, via que se tratava apenas de uma leitura dram�tica que ele estava fazendo.
“Eu realmente comecei a enlouquecer”, admite ele, entre risos. “� porque eu queria fazer uma tradu��o que pudesse ser lida como qualquer outro livro e que tamb�m funcionasse para ser falada. Para isso voc� precisa dar uma entona��o para a fala do personagem e entrar na emo��o dele”, afirma.
A primeira vers�o da tradu��o ficou pronta em novembro de 2020, tr�s meses depois que iniciou o trabalho. Ele submeteu o projeto � editora, que, de pronto, aceitou-o. No entanto, depois de decidirem que “Rei Lear” sairia em edi��o bil�ngue, Lacerda pediu para retornar ao texto, a fim deix�-lo mais pr�ximo do original. Trocou palavras e express�es que havia utilizado, comparou sua tradu��o com as de Carlos Alberto Nunes, Mill�r, Barbara Heliodora e Lawrence e, depois de um ano, entregou a vers�o final de sua tradu��o.
Juca de Oliveira na pe�a "Rei Lear", em 2014. Ator revelou que o personagem de Shakespeare foi o mais desafiador de sua carreira
Jo�o Caldas Filho/divulga��o
Zool�gico humano
Al�m da aten��o para manter o texto mais fiel poss�vel ao original, Lacerda tamb�m se preocupou em inserir somente notas de rodap� que fossem estritamente necess�rias para a compreens�o da trama, como a explica��o do termo “Tom, o louco de Bedlam", constantemente usada por diferentes personagens para se referir aos pacientes do Bethlem Royal Hospital.
A institui��o, criada na �poca de Shakespeare e que existe at� hoje, abrigava mendigos e doentes psiqui�tricos, ao mesmo tempo em que servia como esp�cie de zool�gico humano, deixando os internos em jaulas � exibi��o ao p�blico, a quem era permitido provoc�-los cutucando com varas para que tivessem acessos de f�ria diante dos espectadores.
Observa��es e contextualiza��es mais profundas est�o no posf�cio do pr�prio tradutor. � l� que ele explica, por exemplo, como Shakespeare se apoiou em refer�ncias hist�ricas de diferentes �pocas para tornar sua trama atemporal.
“Embora apare�a em cr�nicas supostamente hist�ricas da Inglaterra, o personagem Rei Lear parece ser mais mitol�gico do que hist�rico. Acho que, para manter essa hist�ria num plano m�tico, Shakespeare combinou v�rias refer�ncias de per�odos diferentes para que o leitor ficasse sem saber exatamente em que momento da hist�ria aquele enredo se encaixa. Ele faz isso nos planos religioso e pol�tico”, afirma.
De acordo com Lacerda, no plano religioso, o dramaturgo se apoia em refer�ncias celtas, greco-romanas e cat�licas, que foram as cren�as predominantes na Inglaterra ao longo do tempo.
J� no plano pol�tico, Shakespeare lan�a m�o do direito germ�nico medieval, no qual as quest�es deveriam ser resolvidas em duelo; e da representa��o do tribunal de um sistema judici�rio mais parecido com o que existe hoje, com os ju�zes constitu�dos, j�ri, r�u e promotoria (ele faz isso na cena em que Lear julga as filhas Goneril e Regan).
“Voc� n�o sabe muito bem que tipo de monarquia � aquela. � uma monarquia primitiva, renascentista ou � um rei da antiguidade? N�o fica muito claro”, observa Lacerda. “Ele (Shakespeare) vai sobrepondo refer�ncias hist�ricas contradit�rias para que o enredo da pe�a continue no plano m�tico”, diz.
'Embora apare�a em cr�nicas supostamente hist�ricas da Inglaterra, o personagem Rei Lear parece ser mais mitol�gico do que hist�rico. Acho que, para manter essa hist�ria num plano m�tico, Shakespeare combinou v�rias refer�ncias de per�odos diferentes para que o leitor ficasse sem saber exatamente em que momento da hist�ria aquele enredo se encaixa'
Rodrigo Lacerda, tradutor e escritor
Mundo em desagrega��o
De maneira geral, “Rei Lear” mostra o mundo em desagrega��o, sendo substitu�do por um novo universo de valores. Esse mundo em desagrega��o � o mundo do imagin�rio medieval representado por Lear, onde o rei era equivalente a Deus.
Na concep��o de Shakespeare, existia uma escala hier�rquica muito bem definida e r�gida, na qual n�o havia possibilidade dos cidad�os mudarem de posi��o. Essa hierarquia, no entanto, � quebrada pelo pr�prio protagonista, ao abrir m�o do poder.
A atitude do rei, portanto, � uma alegoria para mostrar que o tradicional sistema pol�tico estava sendo substitu�do por uma nova sociedade, um novo universo de valores de car�ter mais renascentista.
“� um universo onde o valor de cada um n�o est� determinado pelo seu nascimento, e sim pelo seu valor individual. Isso parece �timo, mas, para a pe�a, o problema � que voc� desorganiza a hierarquia r�gida, cria uma mobilidade social muito maior (o que � bom), mas, nas brechas dessa nova sociedade, vem a gan�ncia desmedida e o individualismo exacerbado”, afirma Lacerda.
“As duas filhas que herdam o trono n�o tinham um compromisso real com a coletividade, com a paz e a prosperidade do reino. Elas s� queriam o poder pelo poder, assim como o vil�o, filho de Gloucester. Ele � um homem inteligent�ssimo, muito h�bil, guerreiro, mas n�o serve para ser rei, porque s� quer o poder para o gozo pessoal, e n�o para zelar pelo bem da coletividade”, observa o tradutor.
“Isso posto, percebe-se que a pe�a trata de um mundo que est� desmoronando com coisas boas e ruins, ao mesmo tempo em que outro mundo est� emergindo, tamb�m com coisas boas e ruins”, conclui.
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