Os atores Jottapê, Bruna Mascarenhas e Christian Malheiros, sentados em mureta, sorriem, em cena de 'Sintonia'

A Netflix anunciou que lan�ar� em breve a terceira temporada de "Sintonia"

Netflix/Divulga��o


Sal�rio fixo e benef�cios. Em um mercado como o audiovisual, cheio de aut�nomos, ser roteirista e arranjar um emprego com carteira assinada sempre foi dif�cil, mas n�o imposs�vel.

Por d�cadas, os autores com voca��o para a teledramaturgia tinham sua esp�cie de xangri-l� - a TV Globo, onde era poss�vel receber pagamentos generosos como funcion�rio fixo, sem necessariamente ter algum programa no ar, e um extra de at� 50% quando se emplacava alguma ideia na telinha.

Mas isso est� mudando. Em um cen�rio de ascens�o do streaming, a emissora carioca tem deixado de renovar contratos com autores, demitindo roteiristas, contratando profissionais por projeto e provocando um choque de oferta no mercado.

A empresa diz em nota que tem tomado medidas para se preparar para o futuro e se adequar �s pr�ticas do mercado, mas afirma que n�o abriu m�o de contratos de exclusividade. Diz ainda que o novo modelo de neg�cios est� ligado � busca por novos talentos e mais diversidades por tr�s das telas.

Roteiristas

As demiss�es na Globo fazem parte de um fen�meno maior de mudan�as nas rela��es de trabalho no audiovisual brasileiro, que t�m afetado os roteiristas de modo particular. Mesmo autores que j� estavam fora do �den televisivo relatam uma piora nos modos de contrata��o, nas formas de pagamento e no reconhecimento de cr�ditos, entre outros problemas.

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Eles atribuem a piora aos contratos impostos pelas plataformas de streaming e dizem que o cen�rio foi agravado durante o governo de Jair Bolsonaro, quando os canais de financiamento para produ��o ficaram praticamente paralisados, o que tornou os servi�os de v�deo sob demanda uma das �nicas op��es de sustento para muitos profissionais.

Os protestos correm � boca pequena, j� que os contratos com as empresas estrangeiras t�m cl�usulas de confidencialidade, que podem ser violadas por uma cr�tica p�blica.

Uma das principais queixas � quanto aos pagamentos. Roteiristas reclamam de trabalhar meses em uma ideia sem receber, porque o pagamento costuma estar condicionado � aprova��o final das plataformas.

Se for experiente, um autor pode receber at� R$ 200 mil por um projeto. Parece muito, mas depende de quanto tempo o trabalho durar, e h� reclama��es sobre contratos sem prazo.

Uma roteirista e consultora de projetos com mais de 10 anos da experi�ncia diz, sob a condi��o de anonimato, ter ficado dois anos presa no desenvolvimento de uma s�rie - o que, na pr�tica, torna o valor proporcionalmente menor.

Al�m disso, o escopo do trabalho pode ser maior do que o combinado. Se o acertado eram tr�s vers�es de roteiro para cada epis�dio de uma s�rie, por exemplo, n�o � incomum que o processo de escrita e reescrita exija mais do que isso. Isso num cen�rio em que a quantidade de roteiristas no mercado com as demiss�es na Globo ajuda a derrubar os pre�os.
 
Ator José Rubens Chachá apresenta programa de auditório caracterizado como Silvio Santos em cena de O rei da TV

A plataforma Star+ lan�ou no m�s passado a segunda temporada da produ��o brasileira "O rei da TV%", baseada na trajet�ria de Silvio Santos

Star/Divulga��o
 

Plataformas de streaming

Outra quest�o � a falta de cl�usulas que permitam aos autores - e tamb�m aos produtores - ter participa��o no sucesso de uma s�rie ou filme para o streaming. No modelo da TV Globo, por exemplo, os criadores recebem por novas exibi��es, vendas de direitos ao exterior ou licenciamento de obras.

"As plataformas de streaming dominam o cen�rio impondo condi��es contratuais muito prec�rias para os autores, trazendo um modelo de cess�o integral de todos os direitos autorais com um pagamento �nico", diz Paula Vergueiro, advogada da Abra, a Associa��o Brasileira de Autores Roteiristas.

A Abra tem defendido um modelo de gest�o coletiva, como j� acontece no caso da m�sica, com o Ecad, em que os roteiristas poderiam ganhar percentuais pelas exibi��es, mas isso tem sido vetado nos contratos com as plataformas.

Outro ponto de disc�rdia diz respeito ao poder dos criadores no processo. No esquema dos streamings, � plenamente poss�vel que o autor que deu uma ideia de uma s�rie, por exemplo, seja escanteado do desenvolvimento e substitu�do por outros nomes. Isso sem falar na interfer�ncia de executivos, algo diferente do antigo esquema da Globo, com autores al�ados � categoria de celebridades nacionais.

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"As plataformas de streaming querem ir no certo. Voc� n�o tem mais tempo de apostar", diz Silvio de Abreu, autor de novelas como "Guerra dos sexos" e "A pr�xima v�tima", que foi diretor de dramaturgia da TV Globo at� 2020 e supervisor de dramaturgia da Warner Media at� o come�o deste m�s.

"O modelo da Globo [com autores fixos] n�o � mais poss�vel. Mas, artisticamente, � um projeto extremamente interessante, apesar de n�o ser dos mais econ�micos. Muitos autores ficavam muito tempo sem escrever."

No ano passado, quando a Abra pediu que o Minist�rio P�blico do Trabalho mediasse um di�logo das empresas com os autores, as plataformas de streaming apontaram o dedo para outro elo da cadeia: disseram que n�o t�m contratos de trabalho com os roteiristas, porque contratam produtoras e terceirizam o trabalho.

J� os produtores se defendem, sempre nos bastidores, dizendo que os modelos de contrato s�o imposi��es das plataformas, sem margem para altera��es.

A reportagem procurou as principais plataformas estrangeiras de streaming com opera��es no Brasil para que elas comentassem as queixas dos roteiristas, mas as empresas preferiram n�o se manifestar. Em uma conversa sob a condi��o de anonimato, um alto executivo de uma plataforma estrangeira no Brasil diz que o streaming ainda est� tentando se viabilizar como neg�cio.
 
Os atores Flavio Tolezani e Gabriel Leone se encaram com expressão tensa em cena da série Dom

A segunda temporada de "Dom" chegou ao Prime Video em mar�o passado

Prime/Divulga��o
 

Mercado audiovisual

Um levantamento da consultoria Dataxis mostra os preju�zos que conglomerados de m�dia americanos tiveram no ano passado nos seus neg�cios diretos ao consumidor. A Paramount e a Warner Bros. Discovery, por exemplo, tiveram perdas de US$ 2 bilh�es, ou R$ 10,5 bilh�es, no streaming. No caso da Disney, o valor � de US$ 4 bilh�es, equivalentes a R$ 21 bilh�es. O executivo diz que as assinaturas n�o s�o suficientes para lucrar, porque elas flutuam ao sabor do pre�o das a��es nas bolsas de valores.

Nos Estados Unidos, diferentemente do Brasil, os roteiristas contam com um forte sindicato, a WGA (Writes Guild Association), que h� alguns anos amea�ou paralisar Hollywood com uma greve de autores. A WGA negocia acordos coletivos com est�dios e t�m arrancado compromissos tamb�m das plataformas de streaming.

As negocia��es para o novo acordo come�aram no m�s passado, j� que o antigo expira no come�o de maio. Desde ent�o, o receio de uma greve se espalhou pela ind�stria. O pano de fundo � parecido com o caso brasileiro. Na era do streaming, os autores americanos consideram ganhar menos do que nos tempos �ureos da televis�o.

Mas no Brasil n�o existe uma associa��o semelhante pelo fato de apenas trabalhadores de carteira assinada estarem associados a sindicatos. "Aqui, o modelo de presta��o de servi�os n�o � um v�nculo trabalhista", diz Paula Vergueiro, advogada da Abra. "A maioria dos roteiristas trabalha sem esse v�nculo, mas isso n�o deveria ser um motivo para eles ficarem desamparados. Se o mercado imp�e novas formas de contrata��o, isso n�o quer dizer que o trabalhador deva ficar desassistido."