Apresentador Jacinto Figueira Júnior está sentado no estúdio usando seus famosos sapatos brancos

Entre os anos 1960 e 1990, Jacinto Figueira J�nior, o Homem do Sapato Branco, comandou programas que atra�am audi�ncia apresentando show de horrores na TV

Facebook/reprodu��o
 
 
Sobe a trilha de horror. Na tela, um homem caminha pela noite. Sua sombra se projeta nas paredes dos becos, os sapatos reluzem nas cal�adas. De repente, ele aparece na penumbra de um est�dio de TV, o espectador prende a respira��o. Vai come�ar “O Homem do Sapato Branco”.
 
Esse � o apelido famoso. O nome real � Jacinto Figueira J�nior (1927-2005), um dos precursores do sensacionalismo nas telinhas do pa�s. � ele o assunto do livro “O Homem do Sapato Branco: A vida do inventor do mundo c�o na televis�o brasileira” (Todavia), do jornalista e cr�tico de TV Mauricio Stycer.
 
Por mundo c�o entenda-se programas que transmitiam cirurgias, brigas de vizinhos, m�diuns demonstrando habilidades, homem que se dizia gr�vido, ceias para mendigos e confus�es na rua. Claro, tamb�m os casos policiais, que mais tarde seriam tema de v�rios imitadores de Jacinto.
 
“Sempre me interessaram as ondas de sensacionalismo na hist�ria da TV brasileira”, diz Mauricio Stycer. “Em diferentes momentos, h� excesso de apela��o e, depois, um refluxo. Em um momento, tive a ambi��o de fazer uma hist�ria do sensacionalismo.”
 
Escolheu Jacinto porque, a partir da trajet�ria dele, � poss�vel compreender como esse tipo de programa se estabeleceu no pa�s.
 
• Veja entrevista de Jacinto Figueira J�nior a Ant�nio Abujamra:
 
 

Entre os anos 1960 e 1990, com intervalos e um per�odo de ostracismo no meio, o apresentador teve v�rias encarna��es na televis�o, dos prim�rdios da TV Cultura, que ainda tinha Assis Chateaubriand como dono, aos primeiros passos da Globo e do SBT.
 
Come�ou como produtor no “C�meras indiscretas”, na Cultura, fazendo parte de um evento hist�rico das telas brasileiras: a exibi��o do transplante de c�rnea em uma garota. “Meia S�o Paulo pediu a Deus que, pela m�o dos homens, devolvesse a vis�o � menina”, relatava a imprensa.

No palco, mulher leva tapa na cara

Como apresentador, o primeiro programa foi “Um fato em foco” e, depois, veio “O Homem do Sapato Branco”, ambos na Cultura. Este, respons�vel pelo apelido de Jacinto, faria um p�riplo por v�rios canais nos anos seguintes.
 
Foi acusado de promover um show de horrores nesse caminho. Supostos criminosos eram exibidos no palco pela pol�cia, com algemas nos pulsos. Podiam ser cobrados por Jacinto, com voz severa: “Quantas vezes voc� j� roubou?”, indagava, antes de desferir um tapa na cara de uma mulher.
 
Em outros momentos, o apresentador prometia resolver conflitos de vizinhos – caso dos moradores de um corti�o onde o senhorio tinha baixado norma proibindo sexo, a n�o ser que o locat�rio desse “autoriza��o expressa”. N�o era incomum que tudo descambasse para confus�o no palco.
 
Por tr�s de tudo, a promessa que soava como novidade na televis�o do per�odo: mostrar a verdade, nada mais do que a verdade.

S� que n�o era bem assim. E a verdade, nesse caso, depende do gosto do fregu�s. O livro de Stycer confirma, por meio de depoimentos, o que � �poca era apenas uma suspeita forte da cr�tica: muito do que era levado ao programa era encena��o.
 
Apresentador Jacinto Figueira Júnior olha para a câmera

Jacinto Figueira J�nior, cassado durante a ditadura militar, era detestado pelo general Artur da Costa e Silva

Di�rio de SP/AG/2005
 

Dramas fabricados para atrair audi�ncia 

�s vezes as hist�rias eram reais, mas representadas por atores, e tamb�m n�o era incomum que a produ��o desse sua forcinha para que os casos descambassem em baixaria diante das c�meras. “As hist�rias eram verdadeiras, os personagens n�o”, diz um dos entrevistados pelo autor.
 
“Tem um cr�tico que fala em drama fabricado”, afirma Stycer. “O que o Jacinto sempre usou como argumento de defesa � que aquilo representava uma vers�o da verdade.”
 
O livro tamb�m reconstr�i a curta carreira pol�tica de Jacinto como deputado estadual em S�o Paulo, at� o momento em que ele perde o mandato junto a outros pol�ticos, cujos direitos foram cassados pelo Ato Institucional 5, durante o regime militar.
 
Stycer teve acesso a documentos da ditadura que ajudam a iluminar como o Homem do Sapato Branco era visto pelas elites pol�ticas. Na sess�o que suspendeu os direitos pol�ticos dele, o pr�prio presidente Artur da Costa e Silva diz que Jacinto � “uma das maiores calamidades” de S�o Paulo.
 
O autor do livro aponta que o apresentador ofendia o gosto das elites pol�ticas e culturais daquele momento. “Acho importante registrar que h� um preconceito tamb�m”, diz. “O Jacinto v�rias vezes foi objeto de pedidos de censura. N�o s� do Estado, mas tamb�m da m�dia. Eu cito exemplos de ve�culos de imprensa que eram censurados e festejavam a censura a ele.”
 
Quando foi cassado, Jacinto j� era celebridade, com a vida acompanhada por ve�culos como o jornal Not�cias Populares, onde ele chegou a escrever uma coluna nos anos 1980. Nos textos, gostava de usar palavras como falcatruas, cascatas, vigaristas e charlat�es.
 
O apresentador at� trouxe inova��es para a TV ao introduzir no debate p�blico assuntos que n�o eram retratados ou ao mostrar o que acontecia nas ruas, mesmo com c�meras dif�ceis de tirar do est�dio. Mas tamb�m deixou heran�as problem�ticas.
 

'Quando o jornalismo � misturado com entretenimento, voc� desvia a aten��o do espectador para aspectos apelativos, coloca em quest�o a verdade do que est� sendo dito, transforma o jornalismo em show. Uma das motiva��es do meu livro � mostrar os perigos dessa mistura'

Mauricio Stycer, jornalista e cr�tico de TV

 

Parceiro da pol�cia

A proximidade com a pol�cia, sem questionar a��es das for�as de seguran�a, � algo que se repete em programas que retratam crimes hoje.
 
“Voc� v� programas que est�o sempre com isso da exalta��o, mesmo quando a pol�cia � violenta ou age de forma question�vel. Jacinto � um dos pais disso”, afirma Stycer.
 
O cr�tico de TV aponta a heran�a do personagem em programas que mostram casos de fam�lias ou vizinhos, com brigas no palco, e pautas de defesa do consumidor. A exposi��o de pessoas pobres – no geral negras – a situa��es vexat�rias tamb�m tem ra�zes no Homem do Sapato Branco.
 
“� televis�o feita por gente numa situa��o de poder. S�o situa��es de muito desrespeito a pessoas humildes, que n�o entendem o impacto de aparecer num programa de TV”, diz Stycer. “Tenho visto casos em que a Justi�a reconhece que a pessoa foi v�tima de humilha��o, de acusa��o falsa, e deu uma melhorada. Mas � uma esp�cie de combust�vel desses programas.”

Ratinho, 'Linha direta' e true crime

Jacinto considerava Carlos Roberto Massa, o Ratinho, um de seus principais imitadores. Stycer v� pontos de contato entre o trabalho do Homem do Sapato Branco e outros produtos culturais, como a moda das hist�rias de true crime e a volta de programas como o “Linha direta”, da TV Globo.
 
“Muitas vezes se faz uma tentativa de dar embalagem mais suave para coisas escabrosas. O resgate do 'Linha direta' � isso. A Globo podia fazer programas ser�ssimos, mas optou por um programa que, na origem, � ultrapopular, com reconstitui��es de crime meio grotescas”, diz Stycer. “No Globoplay est�o fazendo programas de crime s�rios, mas na TV aberta � essa coisa.”
 
Para o cr�tico, o mesmo dilema da �poca de Jacinto continua a existir na televis�o: a mistura entre jornalismo e entretenimento, muitas vezes em preju�zo do jornalismo.
 
“At� hoje isso � uma causa de perda de credibilidade do jornalismo. Quando ele � misturado com entretenimento, voc� desvia a aten��o do espectador para aspectos apelativos, coloca em quest�o a verdade do que est� sendo dito, transforma o jornalismo em show. Uma das motiva��es do meu livro � mostrar os perigos dessa mistura”, afirma o autor de “A vida do inventor do mundo c�o na televis�o brasileira”.
 

Capa do livro O homem do Sapato Branco

Capa do livro O homem do Sapato Branco

Todavia/reprodu��o
“O HOMEM DO SAPATO BRANCO”

A vida do inventor do mundo c�o na televis�o brasileira

. De Mauricio Stycer
. Todavia
. 224 p�ginas
. R$ 74,90