Uma das maiores refer�ncias do teatro brasileiro, Jo�o das Neves foi incans�vel. De sua juventude at� os �ltimos momentos, o artista nunca deixou de criar e pensar a cultura brasileira. Militante do teatro, foi ator, diretor, iluminador, cen�grafo e autor de diversas pe�as, al�m de se expressar pela poesia e exercer importantes parcerias com compositores e m�sicos.
Inquieto, sua luta por uma sociedade mais digna, justa e livre est� refletida em toda a sua trajet�ria teatral, seja na constante busca por uma est�tica autoral ou pelos temas escolhidos para levar aos palcos. O exerc�cio da arte, em especial o teatro, foi a arma nessa luta de Jo�o para transformar a sociedade, pois, como ele pr�prio afirmou: “A busca, a pesquisa de linguagem, por parte de n�s, talvez seja at� mais rigorosa do que nos outros. Porque a nossa est�tica � ligada, necessariamente, a uma �tica”.
Desde o in�cio dos anos 1990 vivendo em Minas Gerais, Jo�o das Neves faleceu na manh� de ontem em sua casa, em Lagoa Santa (MG), aos 84 anos, em decorr�ncia de met�stase �ssea, deixando sua companheira, Titane e duas filhas, Maria Jo�o, de 29, e Maria �ris, de 17. O artista foi velado na tarde desta sexta-feira (24) no Cemit�rio Parque da Colina, em Belo Horizonte, onde foi cremado.
Atuante desde a d�cada de 1960, Jo�o das Neves desenvolveu uma trajet�ria ligada �s quest�es sociais e pol�ticas. Em seus textos e na escolha dos espet�culos, est� sempre presente a preocupa��o com grupos marginalizados e perif�ricos. Sua obra incorpora os mais diversos componentes da cultura brasileira, com olhar sens�vel para a multiplicidade de aspectos da identidade nacional. Fez teatro engajado como resist�ncia � ditadura militar, levou � cena o debate sobre o feminismo ao montar espet�culo com elenco formado exclusivamente por mulheres, apostou na valoriza��o da cultura afro-brasileira e na luta dos povos ind�genas por suas terras e suas tradi��es.
REPERCUSS�O A morte do teatr�logo repercutiu no meio cultural. O secret�rio de estado de Cultura, Angelo Oswaldo, lamentou em nota a morte do dramaturgo. “Jo�o das Neves se tornou um �cone, pelo seu papel hist�rico no teatro de resist�ncia cultural e enfrentamento pol�tico. Era um mestre e jamais deixou de participar e incentivar novos valores nas artes c�nicas. A cultura mineira se enriqueceu com sua presen�a luminosa entre n�s”, diz o texto.
Chico Pel�cio, diretor e ator do Grupo Galp�o, lamentou a morte do colega, com quem trabalhou. “Jo�o era uma pessoa muito especial, n�o s� pelo talento e perseveran�a. Ele era fiel a um ponto de vista est�tico e cultural em acordo com as convic��es dele, e trilhou um caminho muito coerente. Ele olhava para a cultura brasileira, e n�o somente a teatral, olhava para a cultura perif�rica, para as minorias, atento aos direitos dessas minorias. Eram invej�veis a energia e coer�ncia da carreira do Jo�o”.
Em Belo Horizonte, Pel�cio conta que no Oficin�o do Galp�o, projeto de forma��o de atores e cria��o de espet�culos, o diretor teve papel importante. “Ao dirigir Madame Sat�, Jo�o catapultou o teatro negro em Belo Horizonte. Foi uma iniciativa que ajudou a colocar na mesa o teatro negro, tema urgente, contempor�neo e necess�rio.”
Ator de Madame Sat�, Denilson Tourinho destaca o fato de Jo�o das Neves ter trabalhado com n�o atores. “Ele caminhou com as pessoas das representa��es diversas do movimento social, abriu caminho, compartilhou o bast�o para os fazeres diversos de ‘artivismo’”, diz, explicando que “artivistas” s�o pessoas que “fazem da arte e cultura meio de buscar a justi�a social”. Rodrigo Jer�nimo, codiretor de Madame Sat�, lembra que “o Grupo dos Dez foi criado em 2008 por provoca��o do pr�prio Jo�o das Neves e da Titane”. “Ele dirigiu dois dos tr�s espet�culos do nosso repert�rio. Falar do Jo�o � falar do meu trabalho”, diz Rodrigo.
Parceiro no espet�culo Homem de papel�o, o diretor teatral Marcelo Bones diz que Jo�o era um agitador, destacando “a vis�o coletiva de todos os processos: art�sticos e pol�ticos”. “Jo�o sempre foi militante das pol�ticas p�blicas para artes. Al�m de ser figura das mais importantes do teatro, teve papel importante na luta pela cidadania, pelos brasileiros, pelo ser humano. Um eterno lutador. Foi para o Acre, Piau�, estados do Norte e Nordeste. Fundou grupo de teatro com ind�genas. Era inquieto, com puls�o de cidadania. Entendia o teatro como express�o pol�tica.” Marcelo Bones afirma que Jo�o das Neves � uma das grandes figuras da “gera��o que fundou o pensamento do teatro contempor�neo brasileiro, ao lado de Antunes Filho, Augusto Boal e Jos� Celso”.
TRAJET�RIA Sua liga��o com o teatro se deu ainda na adolesc�ncia, que o levou � Funda��o Brasileira de Teatro (FBT), onde se formou como ator e diretor. Sua primeira companhia foi Os Duendes, que atuou, sob sua dire��o, no Teatro Arthur Azevedo, na periferia carioca de Campo Grande, durante o governo de Carlos Lacerda, no in�cio dos anos 1960.
Depois de o grupo ser expulso do espa�o pelo governador, acusado de subvers�o, Jo�o das Neves integra o Centro Popular de Cultura (CPC), promovendo o teatro de rua, at� ser novamente banido pelo golpe militar de 1964. Foi um dos fundadores do Grupo Opini�o, atuando em v�rias fun��es – diretor, iluminador, cen�grafo e ator. Destacou-se na dire��o de pe�as importantes que criticavam a ditadura, caso de A sa�da, onde fica a sa�da? (1967), escrita por Armando Costa, Ant�nio Carlos Fontoura e Ferreira Gullar, O �ltimo carro (1976) e Mural mulher (1979), ambas escritas e dirigidas por ele.
O �ltimo carro, escrita nos anos que se seguiram ao golpe militar, apresenta a met�fora de um trem desgovernado, ao mesmo tempo em que comp�e um retrato da vida na periferia das grandes cidades. O espet�culo ficou cerca de dois anos em cartaz e foi assistido por mais de 200 mil pessoas. Representou uma significativa ruptura no modelo convencional de teatro, pois o espa�o c�nico da arena foi invertido, colocando o p�blico no centro da a��o, com atores atuando em seu redor. Desde ent�o, Jo�o frequentemente explorou espa�os n�o convencionais, encenando em parques, florestas, espa�os urbanos habitados ou abandonados, rompendo a tradi��o do palco italiano.
Em Mural mulher, com elenco exclusivamente de mulheres, s�o levadas ao palco quest�es sobre igualdade de g�nero, lutas sociais, o movimento LGBT e outros. O texto foi criado a partir de entrevistas com mulheres de diferentes classes sociais e profissionais, formando um painel sobre a condi��o feminina no pa�s.
A atua��o de Jo�o das Neves n�o se restringe � dramaturgia e � encena��o de espet�culos teatrais. Seu trabalho como escritor para o p�blico infantil tamb�m reflete a preocupa��o com temas sociais, seja o racismo em O leiteiro e a menina noite (1970) ou a viol�ncia A lenda do Vale da Lua (1975). Em 2016, aventurou-se pela poesia, com o livro de haikais Rumores. E, em 2018, publicou Di�logo com Emily Dickinson, tamb�m de poesia, no qual estabelece uma rela��o imagin�ria com a escritora americana.
Seu dom�nio da linguagem do palco o fez ser convidado para dirigir shows de grandes artistas da m�sica popular – Baden Powell, Jo�o do Vale, Chico Buarque, Milton Nascimento, Geraldo Vandr� e outros. Mais recentemente, trabalhou em parceria com Elomar, Rufo Herrera e Titane, al�m de �peras (Qorpo santo, de Jorge Antunes).
Sempre atento aos movimentos de luta, Jo�o das Neves viveu por alguns anos no Acre, onde fundou o grupo Poronga, escrevendo e dirigindo obras de tem�tica ambiental e ind�gena – Tributo a Chico Mendes (1988) e Yurai� – O rio do nosso corpo (1990), texto ainda in�dito, que retrata a saga do povo caxinau�.
MINAS No in�cio dos anos 1990, o teatr�logo escolheu viver em Minas Gerais. Companheiro da cantora Titane, estabeleceu com ela parceria na dire��o de shows e projetos musicais. Em Belo Horizonte, dirigiu duas pe�as escritas por Paulo C�sar Pinheiro (Galanga e Chico Rei, de 2011) e Zumbi, de Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri (2012), com 10 atores negros no palco. As tr�s pe�as formam um conjunto com tem�ticas hist�ricas ligadas � escravid�o e � cultura afro-brasileira, assim como Madame Sat� (2015), escrita em parceria com Rodrigo Ger�nimo, sobre o personagem carioca.
A riqueza da cultura mineira recebeu a aten��o do artista. Trabalhou com grupos de congado, o que resultou no espet�culo A santinha e os congadeiros, que conta o mito fundador do congado. Buscou no artesanato do Vale do Jequitinhonha inspira��o para criar Maria Lira, sobre a artes� e pesquisadora de Ara�ua�; e Ulisses, a trajet�ria, em que mescla a hist�ria do escultor Ulisses Pereira, de Cara�, ao mito do her�i grego.
Em 2015, nas comemora��es dos seus 80 anos, o ator e diretor foi homenageado com a exposi��o Ocupa��o Jo�o das Neves, no Ita� Cultural de S�o Paulo. Na ocasi�o, o acervo do artista foi restaurando e organizado e, posteriormente, doado para a Biblioteca Universit�ria, sob a guarda da Divis�o de Cole��es Especiais e Obras Raras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Em 1992, encenou Primeiras hist�rias, baseado no livro de contos de Guimar�es Rosa. A pe�a estreou no Parque Municipal Fazenda Lagoa do Nado, na Regi�o Norte da capital mineira. Nesse di�logo com a literatura, merecem destaque tamb�m Tro�os e destro�os, adapta��o de contos do livro de Jo�o Silv�rio Trevisan, de tem�tica homoafetiva; e Pedro P�ramo, adapta��o do romance do mexicano Juan Rulfo, encenada em um t�nel suburbano desativado.
Tamb�m em 2016, voltou ao palco ap�s 25 anos, para atuar em Lazarillo de Tormes, pe�a de autor an�nimo do s�culo 16 que faz uma s�tira dos poderosos, expondo as mazelas da Idade M�dia, mas que permanecem as mesmas da atualidade. A adapta��o ganhou toques de commedia dell arte, com m�scaras e cen�rios alusivos � cultura hip-hop. “As hist�rias que o ser humano inventa, as situa��es sociais que enfrentamos, nossos embates para sobreviver s�o os mesmos, mesmo quando ambientados em sociedades diferentes”, afirmou ao EM na ocasi�o.