
Entre muitos aspectos inusitados oriundos da pandemia do novo coronav�rus, chamam a aten��o os embates envolvendo a confian�a (ou n�o) da sociedade na ci�ncia. Enquanto o combate ao v�rus mortal depende dos avan�os e da efici�ncia das pesquisas para a elabora��o de vacinas ou tratamentos eficazes contra a microsc�pica e contagiosa amea�a, muitas pessoas, incluindo governantes, divergem das conclus�es e orienta��es dos especialistas sobre o tema."Notamos essa caracter�stica de as pessoas acharem que a opini�o delas vale tanto quanto a de algu�m que estudou aquilo profundamente. � uma ideia de que n�o existe verdade. Cada um fala o que quiser, um relativismo exacerbado e extremamente perigoso, porque, dessa forma, nada pode ser debatido, j� que o que vale � a posi��o de cada um. Isso � prejudicial para a sociedade"
Bruno Pettersen, fil�sofo
Em pleno s�culo 21, a desconfian�a sobre o que � atestado por quem dedicou a vida ao estudo de um assunto espec�fico alimenta pol�micas e resgata ideias de fil�sofos que viveram h� mais de 300 anos, quando o Iluminismo transpunha as trevas e a fogueira.
O escoc�s David Hume (1711-1776) � reconhecido como um dos principais pensadores do Empirismo e do Ceticismo. Suas ideias colaboraram para a afirma��o da experimenta��o como o caminho para o conhecimento. Estudioso de sua obra e especialista em Ceticismo, o professor Bruno Pettersen, da Faculdade Jesu�ta de Filosofia e Teologia, aponta que, concomitantemente � pandemia, vivemos um per�odo chamado por alguns autores de “anti-iluminismo”, marcado pela desist�ncia da raz�o.
“Notamos essa caracter�stica de as pessoas acharem que a opini�o delas vale tanto quanto a de algu�m que estudou aquilo profundamente. � uma ideia de que n�o existe verdade. Cada um fala o que quiser, um relativismo exacerbado e extremamente perigoso, porque, dessa forma, nada pode ser debatido, j� que o que vale � a posi��o de cada um. Isso � prejudicial para a sociedade”, afirma o professor.
Com base nas teorias filos�ficas, ele exemplifica o problema. “Da forma que eu vejo, a ci�ncia n�o � a verdade final sobre tudo. Nenhuma ferramenta humana � a verdade final sobre qualquer conhecimento. Mas a ci�ncia est� baseada na ideia de que qualquer afirma��o feita tem que ter duas caracter�sticas b�sicas. Uma delas � que qualquer teoria s� ser� justificada se tiver evid�ncia. Pode ser experimental, matem�tica, mas isso distingue a ci�ncia da mera opini�o. � o primeiro e principal fundamento cient�fico. Outra caracter�stica, baseada em Karl Popper (1902-1994), estabelece que qualquer hip�tese deve ser false�vel ou refut�vel. Ou seja, qualquer ideia em ci�ncia pode ser refutada, desde que tenha tamb�m outra evid�ncia para refutar. N�o posso basear uma teoria cient�fica simplesmente na minha opini�o”, afirma.
Para esclarecer por que identifica a emerg�ncia de uma descren�a na ci�ncia, Pettersen exemplifica que “vemos agora uma situa��o em que qualquer pessoa diz que um rem�dio x ou y � adequado para uma doen�a, porque uma tia falou, um conhecido disse que usou. Qual a evid�ncia? A efic�cia e indica��o de um rem�dio s�o atestadas depois de longos procedimentos em pares, grupos, comprova��es complexas”.
RECUSA
Para o fil�sofo mineiro, “muito da recusa da ci�ncia nos nossos tempos tem a ver com essa dificuldade das pessoas de entender que tudo em ci�ncia pode, sim, ser questionado, desde que haja outra evid�ncia cient�fica”.
Ele lembra que, “no Ceticismo, o c�tico em ci�ncia � algu�m que est� aberto �s respostas, ao conhecimento. Se tiv�ssemos claro como fundamento cient�fico a ideia inicial de que tudo precisa de evid�ncia, que qualquer cren�a precisa de prova para se compartilhar, ter�amos uma posi��o mais confort�vel hoje. Negar a ci�ncia n�o � c�tico, mas sim achar que j� se sabe a resposta. Cientistas precisam ser c�ticos para encontrar novas respostas, mas sempre com base em evid�ncias cient�ficas. Sem elas, nada feito”.
Num momento em que a humanidade se encontra combalida pela pandemia que matou quase 300 mil pessoas no mundo e tem n�mero di�rio de v�timas ainda crescente no Brasil, a nega��o dos princ�pios de compreens�o da ci�ncia pode levar a consequ�ncias mais graves.
Recess�o
Para o especialista em Hume, � dif�cil prever mudan�as comportamentais derivadas dessa experi�ncia, mas alguns aspectos j� ficaram claros com a crise sanit�ria. “Fica evidente que estamos num sistema econ�mico profundamente perigoso, que no primeiro sinal de paralisia entra em uma recess�o global absurda. Al�m disso, n�o sou exatamente otimista quanto � melhora das rela��es da popula��o com o conhecimento cient�fico. A ci�ncia mostrou qual � a gravidade do dano provocado por essa situa��o, mas n�o acho que isso far� com que se confie mais nela.”
O professor observa que o vocabul�rio cient�fico ainda � pouco compreens�vel para muita gente e cita o bi�logo Atila Iamarino como um bom exemplo. “Ele faz um bom trabalho, de mostrar pesquisas e explica��es em uma linguagem acess�vel, para que mais pessoas entendam, mas, em vez de gerar engajamento, gera repulsa. H� questionamentos sobre a capacidade dos cientistas para resolver os problemas atuais. � um momento em que, em vez de se apoiar as hip�teses cient�ficas para salvar mais vidas, prefere-se matar o mensageiro a matar a mensagem”, lamenta Pettersen.
Ele acredita que a constru��o de um futuro mais equilibrado, p�s pandemia e quarentena, passa pela educa��o. “Teremos mudan�as, algumas vir�o pelos governos e autoridades, sejam elas o uso obrigat�rio de m�scaras, limite de pessoas nos lugares, mas as rela��es humanas s� se alteram de fato por duas ferramentas. Uma � a educa��o. Ser� mais necess�rio que antes pensar em que tipo de cidad�o queremos formar. Se queremos uma mudan�a que n�o seja motivada pelo instinto de rea��o, ser� preciso formar pessoas capazes de resolver problemas pragm�ticos dentro da tecnologia e capazes de instruir outras pessoas. Atrav�s da ci�ncia, das artes, da filosofia, de uma forma��o ampla, acreditar no esp�rito iluminista e nos tornar melhores atrav�s da educa��o. Outro ponto � uma decis�o racional, de n�o supor que um governo, ou o estado, ir� resolver os problemas, se n�o for guiado pela racionalidade e pela lei”, afirma.
Al�m disso, Pettersen retorna �s ideias de Hume para lembrar de outro aspecto que considera decisivo no atual contexto. “H� um debate hoje sobre empatia. Hume chama de ‘capacidade de simpatia’, mas seria a mesma coisa. Vale para todos, � a compreens�o do outro. Apesar de ser um momento em que estamos em casa, � um momento da radicalidade do outro. Estamos em casa para preservar nossa vida e a vida do outro. Nossa vida n�o pode ser ego�sta, baseada s� nas nossas vontades, mas fundamentada na compreens�o do outro, para respeitar e cuidar do outro. Hume diz que nossa empatia tem um elemento natural. Se vemos algu�m rindo, rimos. Se vemos algu�m chorando, entristecemos. Se estamos em contato com algu�m em dificuldades, sofremos junto. Ent�o, quando tudo est� distante, quando s� vemos os n�meros, � dif�cil, mas quando vemos hist�rias, com nomes, rostos, esse reconhecimento acontece. Basta olhar pela janela. � um momento de fortalecer essa empatia natural, de uma sociedade que se reconhece no outro.”