
“� preciso se desvencilhar das leituras que foram feitas dela na d�cada de 1960, quando o foco reca�a muito sobre o fato de ser uma mulher favelada, negra, analfabeta – alguns diziam semianalfabeta – que tinha escrito um livro falando sobre a mis�ria e a fome que ela passava com seus filhos”, afirma Concei��o.
"Acho que Carolina simboliza muito o esfor�o e a maneira como as classes populares se apropriam da l�ngua portuguesa, do livro, da escrita. A coragem dela de se pronunciar como escritora deixa um vest�gio, uma heran�a do tempo em que popula��es que n�o eram consideradas cultas j� produziam uma escrita, produziam sua poesia, e assim adquiriam esse poder de ter uma voz mais ativa"
Concei��o Evaristo, escritora
Em sua opini�o, a imagem constru�da naquela �poca e que ainda perdura � um empecilho para se chegar a uma compreens�o mais profunda do texto da escritora, que, com “Quarto de despejo”, foi traduzida para 14 idiomas. Concei��o observa que o livro que deu proje��o a Carolina n�o fala apenas de uma fome f�sica, mas de “uma fome que todos n�s sentimos, que � a fome de compreens�o da vida, que, no caso dela, passava pela experi�ncia da solid�o”.
ESCRITA
Respons�vel por assinar a introdu��o do rec�m-lan�ado “Casa de alvenaria” (Companhia das Letras), que re�ne os originais de Carolina Maria de Jesus escritos a partir da publica��o de “Quarto de despejo”, quando ela deixou a favela do Canind� e morou por alguns meses em Osasco (SP), Concei��o Evaristo diz que os textos dessa nova obra apresentam uma autora que questiona, que reflete sobre as rela��es amorosas, que exp�e sua car�ncia humana e afetiva. A introdu��o de “Casa de alvenaria” foi escrita a quatro m�os com Vera Eunice de Jesus, filha de Carolina.
“O que talvez as pessoas n�o percebam muito bem � como Carolina se colocava frente � escrita. A t�nica de vida dela era a escrita, ent�o temos que ler Carolina Maria de Jesus como uma escritora em permanente processo criativo. Ela sabia que estava trabalhando com a arte da palavra, ent�o experimentava do portugu�s cl�ssico ao neologismo e ao portugu�s coloquial, do dia a dia, que passa por uma gram�tica do cotidiano”, aponta. “� preciso ler Carolina Maria de Jesus como algu�m que tem um processo pr�prio de escrita, algu�m que, como qualquer escritor, busca criar atrav�s da palavra.”
Concei��o diz que, se ao longo dos �ltimos anos, houve um aumento do interesse pela obra de Carolina nos c�rculos acad�micos, isso se deve a alguns fatores. E ela enfatiza que se trata de um aumento do interesse por parte de uma parcela da sociedade, e n�o de um “resgate” da escritora.
“O movimento social negro nunca se esqueceu dessas autoras e autores que foram considerados ‘esquecidos’. O movimento social negro tem uma pauta e uma abrang�ncia maiores que o c�rculo acad�mico, ent�o sempre falou dela. H� mais de 10 anos a gente inaugurava uma biblioteca no Centro Cultural Jos� Bonif�cio, no Rio de Janeiro, batizada Carolina Maria de Jesus”, diz.
“O movimento social negro nunca se esqueceu dessas autoras e autores que foram considerados ‘esquecidos’. O movimento social negro tem uma pauta e uma abrang�ncia maiores que o c�rculo acad�mico, ent�o sempre falou dela. H� mais de 10 anos a gente inaugurava uma biblioteca no Centro Cultural Jos� Bonif�cio, no Rio de Janeiro, batizada Carolina Maria de Jesus”, diz.
“Maria Firmina dos Reis, para quem a academia se volta mais agora, � um nome que j� circula dentro do movimento social negro h� muito tempo. Meu primeiro lugar de recep��o como escritora foi o movimento social negro, ent�o, nesse sentido, ele � mais atento”, destaca Concei��o.
Ela considera que a lei de 2003 que obriga o ensino da cultura afro-brasileira nas escolas, as a��es afirmativas e uma maior presen�a de estudantes negros no ensino superior s�o alguns dos fatores que reivindicam esse olhar mais atento da academia para tais obras e autores.
“A presen�a de um corpo discente maior de negros promove essa amplifica��o da leitura de autoria negra. As culturas ind�genas tamb�m entram nesse espectro, t�m sido foco de uma maior observa��o da academia”, diz, acrescentando que, na esteira desse movimento, h� a descoberta de um p�blico interessado nesses textos.
“N�o s� um p�blico negro, mas tamb�m de professores e pesquisadores que, independentemente da quest�o de cor, est�o ali tamb�m querendo ampliar o pr�prio campo de estudo da literatura, querendo pensar outros intelectuais que est�o a� produzindo pensamento, produzindo saber, e que n�o necessariamente nasceram nas classes que det�m a hegemonia cultural.”
HERAN�A
Concei��o destaca que a heran�a de Carolina Maria de Jesus reverbera no espa�o que as popula��es marginalizadas t�m hoje no �mbito da produ��o liter�ria. “Acho que Carolina simboliza muito o esfor�o e a maneira como as classes populares se apropriam da l�ngua portuguesa, do livro, da escrita. A coragem dela de se pronunciar como escritora deixa um vest�gio, uma heran�a do tempo em que popula��es que n�o eram consideradas cultas j� produziam uma escrita, produziam sua poesia, e assim adquiriam esse poder de ter uma voz mais ativa”, diz.
Ela cita as express�es da periferia no campo das artes como um reflexo da atitude afirmativa de Carolina Maria de Jesus. “Esses meninos que hoje produzem essa poesia viva, que inclusive brinca com a l�ngua portuguesa, eles se legitimam e legitimam seus pr�prios trabalhos. Mesmo que sejam cria��es que n�o falam de Carolina, s�o heran�a dessa coragem que ela nos deixa. Quando Emicida diz que � ‘n�is por n�is mesmo’, � isso de pegar a l�ngua portuguesa e criar uma po�tica pr�pria, uma po�tica que contamina.”