Conhe�a Rafael Freire, o fot�grafo do Aglomerado da Serra
Imagens valorizam a beleza e a autoestima dos negros. Perfil do artista mineiro, morador da favela, j� soma 53,6 mil seguidores no Instagram
03/08/2020 04:00
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atualizado 03/08/2020 08:44
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Fred Gandra*
"Meu trabalho � uma forma de resistir"
Rafael Freire,fot�grafo
Vidas negras importam – e muito. Determinado a valorizar o Aglomerado da Serra, a maior favela de Minas Gerais, Rafael Freire, de 27 anos, fotografa os moradores de sua comunidade. Quintais, becos e jardins s�o o cen�rio. Mais de 100 vizinhos j� posaram para ele. “A ideia � dar voz a quem n�o tem”, explica o jovem fot�grafo, nascido e criado na comunidade localizada na Regi�o Centro Sul de Belo Horizonte. “Algumas pessoas chegam a chorar quando veem o resultado”, revela.
Autodidata, Rafael come�ou a fotografar h� 10 anos. A beleza e a sensibilidade das imagens atra�ram 53,6 mil seguidores a seu perfil no Instagram – entre eles, o ator Babu Santana e o m�sico Pedro Calais, da banda Lagum. Ele tamb�m idealizou projeto Favela a Flor que se Aglomera, que j� soma 2 mil f�s na mesma rede social. Junto das imagens, textos falam de racismo, negritude, ancestralidade e invisibilidade social.
DEPRESS�O
Jovem do Aglomerado da Serra, com sua m�scara, clicado por Rafael Freire (foto: Fotos: Rafael Freire/divulga��o)
Tudo come�ou na adolesc�ncia, quando Rafael enfrentou uma crise depressiva. Pediu emprestada a c�mera fotogr�fica da irm� e decidiu fazer autorretratos. “Tentava, de alguma forma, enxergar beleza em mim”, conta. Para escapar da tristeza, tamb�m clicava a natureza. “Passava o dia tirando foto no Parque das Mangabeiras”, relembra.
Aos 17 anos, come�ou a trabalhar numa papelaria, onde conheceu Loris. “Ela perguntou qual era o meu maior sonho. Ningu�m nunca havia me perguntado isso. N�o sabia o que responder.” A colega insistiu, descobriu o hobby dele e sugeriu: “Por que voc� n�o vira fot�grafo?”.
“Respondi que era um sonho muito caro”, diz Rafael. A c�mera havia estragado, mas Loris n�o se deu por vencida. Comprou outra, gastando economias que guardava para sua festa de casamento. Os dois assinaram um contrato informal, e o garoto se comprometeu a pagar a d�vida, sem pressa. “Sou muito grato a esta mo�a”, confessa.
Em um ano e meio, Rafael quitou a d�vida. E, claro, fotografou o cas�rio de Loris. N�o fez cursos, workshops ou oficinas. Ao pedir conselhos a fot�grafos profissionais, sempre ouvia: “Aprendi sozinho, voc� tamb�m aprende”. Dito e feito. Buscou ajuda em tutoriais na internet, treinou “brincadeiras com a c�mera”. E se virou.
Em 2015, Rafael conseguiu emprego na Escola Municipal Senador Levindo Coelho, no Aglomerado da Serra. Logo depois, no in�cio de 2016, conflitos envolvendo traficantes mudaram a rotina da regi�o. “Tudo parou: escola, supermercado. N�o dava para sair pra nenhum lugar.” Naquele momento, o jovem fot�grafo mirou suas lentes para a comunidade, em vez de �rvores e flores. Registrou o morro, disposto a provar que a favela “n�o vive s� de mazelas”.
Quando as aulas recome�aram, ele pediu aos alunos que escrevessem textos com base naquelas fotografias. Um dos poemas dizia que n�o h� flor na favela. “Fiquei triste com aquela frase”, conta Rafael. Ent�o, decidiu espalhar mudas pelo Aglomerado. Dois anos depois, foi conferir o resultado. Comemora at� hoje: “Tomei um susto, porque encontrei muitas flores.”
Assim surgiu o projeto Favela a Flor que se Aglomera, cuja filosofia � “plantar sementes” por meio da fotografia. Autoestima � o adubo da a��o, valorizando os moradores da comunidade, transformados em modelos. Nas imagens, as flores surgem como adere�os. A ideia de Rafael � tamb�m unir os negros.
Durante os ensaios, ele atua como uma esp�cie de terapeuta, buscando conhecer e destacar as qualidades de seus modelos. “Fa�o anota��es para registrar o melhor de cada um”, comenta. Antes do clique, ouve sobre sonhos e sentimentos. “Tem todo um trabalho po�tico e terap�utico para que as pessoas se sintam melhor”, explica.
Ao longo do tempo, Rafael conquistou o reconhecimento da vizinhan�a. “Ando em qualquer lugar da Serra com a m�quina na m�o, sem ningu�m perguntar aonde vou. Virei refer�ncia em fotografia na comunidade”, orgulha-se. Certa vez, o equipamento estragou e a vizinhan�a fez mutir�o para comprar outra c�mera. “Cheguei a chorar, porque n�o imaginava que meu trabalho tivesse tanto impacto assim”, confessa.
S�o dezenas de fotos postadas no Instagram. O artista n�o tem uma favorita, mas conta a hist�ria do ensaio com seu primo Marcos Vinicius, de 4 anos. O menino se assustou ao ver a c�mera apontada para ele – pensou que era uma arma. “Achou que ia doer”, diz Rafael. O garoto ficou feliz ao se ver clicado enquanto brincava com �gua. A foto “bombou”, com mais de 6 mil curtidas no Instagram. Comovidos, internautas doaram brinquedos para Marcos Vinicius.
ARCO-�RIS
O confinamento social imposto pela pandemia vem atrapalhando os planos de Rafael Freire, mas ele n�o desanima. Antes da quarentena, organizava encontros dos colaboradores de seu projeto – mais de 100 jovens. Teve de suspender as reuni�es. Agora publica retratos nas redes sociais. E passou a inserir um arco-�ris nas imagens. Explica que se trata do “s�mbolo da alegria depois da turbul�ncia”, lembrando que o arco-�ris s� aparece depois da tempestade.
Rafael luta para se profissionalizar. J� fez palestra no congresso Wedding Brasil, atrai f�s entre internautas e participou do projeto Fotografias por Minas ao lado de 300 colegas, a��o solid�ria com o prop�sito de arrecadar recursos para programas voltados para v�timas da pandemia. Batalhador, busca remunera��o justa para seu trabalho – um desafio e tanto. Certa vez, ouviu de um poss�vel cliente que seu pre�o “era muito caro para quem mora na favela”. Isso, depois de cobrar metade do valor de mercado. “A galera acha que por morarmos na favela, temos de ficar mendigando”, desabafa.
Mas Rafael n�o entrega os pontos. “Fico imaginando meus quadros pendurados nas paredes das pessoas”, comenta, empolgado. Enquanto isso, segura as pontas com o sal�rio da Escola Levindo Coelho. “Acaba que n�o sobra nada para investir na fotografia”, admite.
No Instagram, ele criou a p�gina Visto Preto, com o objetivo de vender fotos emolduradas, moletons e camisas estampadas com sua arte.
Outro sonho de Rafael � montar um projeto social para transmitir gratuitamente seu conhecimento nas �reas de fotografia, v�deo e moda. “Vou tentar me inscrever em algum edital para conseguir um espa�o, aqui dentro da Serra, para dar aula”, conta. E avisa: “Meu trabalho � uma forma de resistir.”
* Estagi�rio sob supervis�o da editora-assistente �ngela Faria