João Gilberto brinca com a filha Bebel, ainda bebê

Em registro de 1968, Jo�o Gilberto (1931-2019) brinca com Bebel, sua filha com Mi�cha, nascida dois anos antes

Acervo pessoal

Quando, nos primeiros meses de 2019, Bebel Gilberto preparava o �lbum “Agora”, lan�ado em 2020, seu pai, Jo�o Gilberto, j� estava com a sa�de bastante debilitada. Ela ainda estava, tamb�m, �s voltas com um conturbado processo de interdi��o do criador da batida da Bossa Nova, fruto de um imbr�glio familiar. O novo �lbum da cantora, o rec�m-lan�ado “Jo�o”, com que Bebel presta tributo ao pai por meio da grava��o de m�sicas que ele tornou c�lebres, remonta, de certa forma, �quele per�odo.

A cantora conta que, antes da morte do pai, em julho de 2019, eles se mantiveram muito pr�ximos. Ela diz que sentia a necessidade de se expressar, de falar com ele e sobre ele. Dessa forma, “Jo�o” j� estava presente, em est�gio embrion�rio, enquanto se desenrolava o processo de pr�-produ��o de “Agora”, conforme aponta.

Ela pontua que sempre acreditou conseguir se comunicar melhor por meio da m�sica e que este seria o canal para falar sobre seu pai. Ao mesmo tempo, Bebel carregava a sensa��o de que s� se sentiria autorizada a visitar a obra de Jo�o quando ele n�o estivesse mais por perto. “Quando acabei o 'Agora', eu j� sabia, meio inconscientemente, que o pr�ximo disco seria para ele”, comenta.

Na hora certa

Passados dois anos da morte do pai, Bebel entendeu que o momento havia chegado. Ao lado do produtor Thomas Bartlett, que tamb�m estava presente em “Agora”, ela entrou no Reservoir Studios, em Nova York, para gravar “Jo�o”. O guitarrista Guilherme Monteiro cuidou dos arranjos e aceitou tamb�m o desafio de tocar viol�o, instrumento no qual o homenageado � refer�ncia absoluta. Outros nomes, como Chico Brown, Kenny Wollensen e o pr�prio Bartlett est�o entre os m�sicos que a acompanham.
 
Desse per�odo de imers�o no est�dio, resultaram 11 faixas, entre elas “Eu vim da Bahia” (Gilberto Gil), “Ela � carioca” (Tom Jobim e Vinicius de Moraes), “Caminhos cruzados” e “Desafinado”(ambas de Tom Jobim e Newton Mendon�a). Bebel destaca que a sele��o do repert�rio foi, sobretudo, afetiva. “Quis resgatar m�sicas que tivessem a ver comigo, que tivessem minha cara. Quem me conhece sabe que eu vou muito mais pelo cora��o do que pela cabe�a, ent�o fui nas coisas que eu gostava, sem nenhum vi�s comercial”, ressalta.

Ela explica que dois discos lan�ados por seu pai serviram de esteio para “Jo�o” – o que veio � luz em 1973, batizado apenas “Jo�o Gilberto” e apelidado como o “�lbum branco” do artista; e “Amoroso”, de 1977, que traz os arranjos de Claus Ogermann. “O '�lbum branco' � a espinha dorsal desse meu novo trabalho”, observa. Dele foram pin�adas para “Jo�o” as faixas “Eu vim da Bahia”, “� preciso perdoar” (Alcyvando Luz e Carlos Coqueijo), “Undiu” e “Valsa (como s�o lindos os Youguis)”, ambas de autoria do pr�prio Jo�o.

“Foi um disco feito quando est�vamos morando nos Estados Unidos, eu com minha av�, ent�o � um trabalho que fez com que eu me conectasse muito com meu pai. Tinha um qu� de ansiedade, porque o fato de o �lbum n�o ficar pronto nunca acabava atrasando nossa viagem de volta. Ao mesmo tempo, � um disco que me traz mem�rias lindas. A m�sica engloba v�rias emo��es, pode evocar at� um cheiro, como o do p�ssego, que eu adorava comer naquele per�odo”, diz.
 
Bebel Gilberto em seu apartamento em NY

Bebel Gilberto atualmente vive em em Nova York, de onde deu entrevista ao Estado de Minas, por telefone

Vicente de Paulo/Divulga��o

'Ainda estou processando esse trabalho. Tenho passado os �ltimos tempos angustiada com o que as pessoas v�o pensar. Isso faz parte do processo. Mesmo na minha fam�lia, foram poucas pessoas que escutaram. Vem-me � cabe�a, principalmente, o que Jo�o acharia desse trabalho'

Bebel Gilberto, cantora

 

De “Amoroso” ela resgatou “Caminhos cruzados”, que considera ter sido a m�sica mais dif�cil de cantar do repert�rio de seu novo �lbum. “Eu tinha que fazer direito, o tom certo, a chave certa. Me envolvi muito no arranjo, cuidando para que cada pequena nota estivesse absolutamente correta”, destaca. Ela pontua, com rela��o � faixa de abertura, “Adeus, Am�rica” (Geraldo Jacques e Haroldo Barbosa), que foi uma can��o que levou alguns anos para entender.
 
“S� faz sentido para mim agora. Aquela m�sica foi a hist�ria dele, mas, de alguma forma, tamb�m se tornou a minha hist�ria”, observa. "Adeus, Am�rica" est� presente no �lbum “Live at the 19th Montreux Jazz Festival”, lan�ado por seu pai em 1986.  Outro tema selecionado por Bebel, “Eclipse”, presente em "Jo�o Gilberto en Mexico", de 1970, � cantado em espanhol e tem letra de Margarida Lecuona. Desse mesmo disco, a cantora tamb�m buscou “Ela � carioca”.
 

Do seminal “Chega de saudade”, aparece em “Jo�o” o cl�ssico “Desafinado”. Para fechar o �lbum, Bebel escolheu "Voc� e eu", de Carlos Lyra e Vinicius de Moraes, originalmente registrada no terceiro disco solo do artista, “Jo�o Gilberto”, de 1961. O repert�rio de seu novo �lbum se completa com “O pato”, de Jaime Silva e Neuza Teixeira, extra�da do segundo disco de Jo�o Gilberto, “O amor, o sorriso e a flor”, lan�ado em 1960.

Trilha sonora dom�stica

Bebel salienta que, pela primeira vez, est� interpretando o repert�rio que ficou famoso na voz do pai de modo a revelar como tais can��es realmente foram marcantes para si. “S�o m�sicas que ouvi durante toda a minha inf�ncia, ent�o foi uma escolha de repert�rio muito afetiva, guiada pela intimidade. N�o tive, em momento algum, a preocupa��o em me prender aos cl�ssicos”, afirma.

Ela diz se recordar de ouvir seu pai tocando quando ainda era crian�a e n�o ter a menor ideia de que estava presenciando os bastidores de uma revolu��o na m�sica popular brasileira. “Para mim, era s� a vida acontecendo. Acordava, levava caf� e ele tocava viol�o. Era normal, fazia parte do meu cotidiano. Mas adorava ouvi-lo tocar seus exerc�cios de aquecimento todas as manh�s”, lembra.
 
João Gilberto e a filha, Bebel Gilberto

Pai e filha nos anos 1960

Helena Ancona

'Eu tinha que fazer direito, o tom certo, a chave certa. Me envolvi muito no arranjo, cuidando para que cada pequena nota estivesse absolutamente correta'

Bebel Gilberto, cantora

 

A cantora afirma que gravou “Jo�o” sem nenhuma preocupa��o objetiva em se distanciar – ou, pelo contr�rio, se manter fiel – aos registros que seu pai deixou.
 
“N�o teve nada disso. S� n�o me deixei levar por um caminho mais comercial, como, ali�s, nunca me deixo. Peguei m�sicas que fazem sentido para mim. Meu produtor entendeu perfeitamente eu n�o querer gravar 'Chega de saudade', por exemplo, que � lind�ssima, mas toca minha sensibilidade menos do que as outras que escolhi”, afirma.

“Jo�o” acaba por guardar, dessa forma, uma certa marca autoral, de acordo com Bebel. A identidade que ela imprime ao repert�rio passa por v�rios elementos – a forma de interpreta��o, os arranjos, a escolha dos instrumentos e at� mesmo a escolha dos m�sicos. “Sempre me envolvo em todas as etapas dos discos que gravo. Neste fui coprodutora, o que me permitiu apontar os caminhos por onde seguir”, diz.
 

Guilherme Monteiro foi, a prop�sito, uma escolha muito acertada, comenta. Ela observa que o guitarrista e violonista teve a abertura necess�ria para que pudessem trabalhar em parceria, e que o resultado foi “um trabalho muito incr�vel”. “Ele vive para a m�sica, � muito dedicado, e, ao mesmo tempo, � muito humilde, aceitou de mente aberta as minhas sugest�es. Ele � quem assina os arranjos, mas eles foram concebidos conjuntamente. Pensando que meu pai nunca se repetia, eu acabei por alterar algumas passagens de acordes”, diz.

 

'Seria rid�culo eu tentar cantar igual a ele. Quis homenagear atrav�s das m�sicas, dos acordes, pensando na maneira como ele mudava os fraseados. Isso tudo foi um impulso inicial, mas o tempo todo tendo em mente que precisava estar sob meu controle, com todo o empenho para tentar atingir a genialidade do que ele criou'

Bebel Gilberto, cantora

 

Cole��o de desafios

A cantora n�o nega que, mesmo com a possibilidade de imprimir ao trabalho uma marca pessoal, foi desafiador revisitar o repert�rio que o pai registrou ao longo de sua discografia. Ela diz que foram, na verdade, v�rios os desafios, como escolher as m�sicas certas, dentro da limita��o que um �lbum imp�e, e cantar de uma forma que, ao mesmo tempo, evocasse o pai e estivesse no seu pr�prio tom e estilo.

“Seria rid�culo eu tentar cantar igual a ele. Quis homenagear atrav�s das m�sicas, dos acordes, pensando na maneira como ele mudava os fraseados. Isso tudo foi um impulso inicial, mas o tempo todo tendo em mente que precisava estar sob meu controle, com todo o empenho para tentar atingir a genialidade do que ele criou”, salienta. Ela observa que a quest�o emocional tamb�m foi algo que teve que ser trabalhado.

“As sess�es de est�dio foram carregadas de sentimento. Muitas vezes tive que parar, chorar, colocar para fora a emo��o e come�ar de novo. Tem sido dif�cil. Eu lido com isso profissionalmente, como uma pessoa adulta, mas � dif�cil. Tive que trabalhar duro para abra�ar essa situa��o. Meu pai e eu �ramos muito pr�ximos. J� se passaram quatro anos, mas eu adoraria ligar para ele e pedir conselhos. Isso � algo que nunca vai acabar”, ressalta.
 
 

Controlar a ansiedade antes do lan�amento do �lbum foi outro ponto. “Ainda estou processando esse trabalho. Tenho passado os �ltimos tempos angustiada com o que as pessoas v�o pensar. Isso faz parte do processo. Mesmo na minha fam�lia, foram poucas pessoas que escutaram. Vem-me � cabe�a, principalmente, o que Jo�o acharia desse trabalho”, destaca.

Para Bebel, o que mais chama a aten��o na arte de Jo�o Gilberto � seu estilo, a maneira como ele transformava as m�sicas – o que n�o se resume � batida do viol�o.
 
“H� tempos, ele me falou de 'Estate' (dos italianos Bruno Brighetti e Bruno Martino, gravada em “Amoroso”), dizendo que, da primeira vez que ouviu, gostou, mas sentiu a necessidade de reinvent�-la, imprimindo sua marca. Essa marca n�o � s� a batida da Bossa Nova; passa pela produ��o, pela forma de frasear, de tocar o viol�o, de cantar, enfim, � tudo, um som que ele criou.”

Faixa a faixa

1. “Adeus Am�rica” (Geraldo Jacques e Haroldo Barbosa)
2. “Eu vim da Bahia” (Gilberto Gil)
3. “� preciso perdoar” (Alcyvando Luz e Carlos Coqueijo)
4. “Undiu” (Jo�o Gilberto)
5. “Ela � carioca” (Antonio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes)
6. “O pato” (Jaime Silva e Neuza Teixeira)
7. “Caminhos cruzados” (Antonio Carlos Jobim e Newton Mendon�a)
8. “Desafinado” (Antonio Carlos Jobim e Newton Mendon�a)
9. “Valsa” (Jo�o Gilberto)
10. “Eclipse” (Margarita Lecouna)
11. “Voc� e eu” (Carlos Lyra e Vinicius de Moraes)
 

 

Capa do disco João, de Bebel Gilberto

Capa do disco Jo�o, de Bebel Gilberto

Reprodu��o
"JO�O"

•  �lbum de Bebel Gilberto
•  Pias Recordings (11 faixas)
•  Dispon�vel em todas as plataformas de streaming