Os atores Marcos Frota, Lília Cabral, Marcos Kaloy e Cristiane Rando na peça que se tornou fenômeno pop da cultura brasileira

Os atores Marcos Frota, L�lia Cabral, Marcos Kaloy e Cristiane Rando na pe�a 'Feliz ano velho', que estreou em 1983

Reprodu��o

'Estava buscando um texto que desse voz � ansiedade que a gente sentia, naquele momento de ditadura militar capenga, mas ainda l� (...) J� tinha o movimento despontando de um teatro mais alegre, principalmente no Rio de Janeiro com o Asdr�bal Trouxe o Trombone, que sa�a daquela coisa pesada, do teatr�o'

Marcos Kaloy, ator e ativista estudantil nos anos 1980


No dia 29 de agosto de 1983, dois dias antes da estreia da pe�a “Feliz ano velho”, saiu na Folha de S. Paulo uma nota que anunciava a adapta��o para os palcos do best-seller de Marcelo Rubens Paiva. O livro, lan�ado apenas oito meses antes, j� estava em sua s�tima reimpress�o.

“Longas filas e fartos coment�rios na imprensa j� s�o esperados”, come�ava a nota, n�o assinada. “Mas � uma inc�gnita se no palco as ang�stias autobiogr�ficas de Marcelo Paiva ser�o capazes de ultrapassar o n�vel do lacrimoso”, alertava o redator.

Alcides Nogueira era o autor do texto, o diretor era Paulo Betti. E a montagem ultrapassava, e muito, o n�vel do lacrimoso. Na verdade, a pe�a era uma festa. Misturava circo, com�dia, romance, sexo, drogas, rock'n'roll e, sim, drama.
 

Sonho de liberdade

O espet�culo estreou no momento em que o que ficou marcado como a cara dos anos 1980 – o renascimento do rock brasileiro, a atitude libert�ria em rela��o �s drogas, costumes mais fluidos e sexualidade � flor da pele – ainda n�o tinha mostrado o seu DNA.

“Feliz ano velho”, a pe�a, foi um dos pontap�s iniciais para os anos 1980. At�, claro, o momento em que a epidemia da Aids invadiu de vez o modo de vida das pessoas e acabou com o sonho de liberdade total que a gente tinha.

“N�o havia uma cara musical muito clara no come�o dos anos 1980, ainda se vivia o auge de uma coisa muito depr� que era a m�sica popular brasileira daquela �poca, muito Gonzaguinha, umas coisas muito bolero, sabe? N�o era o nosso barato”, diz o escritor e m�sico Cad�o Volpato, colega e veterano de Marcelo Paiva na Escola de Comunica��es e Artes da Universidade de S�o Paulo (USP), quando o livro e a pe�a foram lan�ados.

“Era um ambiente bem repressor ainda, a ditadura estava l�, tinha gente presa no Doi-Codi at� 1983”, diz. “Era um pa�s cinzento, desanimado, a sensa��o geral era de cansa�o. Nos anos 1970 tinha muito mais adrenalina, porque tudo era muito perigoso, mas naquele come�o de anos 1980 ainda estava tudo indefinido.”
 
Marcelo Rubens Paiva

Best-seller de Marcelo Rubens Paiva deu origem a pe�a, filme e ao livro "Ainda estou aqui", que ter� adapta��o para o cinema dirigida por Walter Salles

Walter Craveiro/divulga��o
 

� a mesma sensa��o da atriz Fernanda Torres, que interpreta Eunice Paiva no filme em produ��o “Ainda estou aqui”, do diretor Walter Salles, baseado no segundo romance autobiogr�fico do escritor, em que ele conta a hist�ria de sua m�e.

“Eu tinha uma sensa��o de inferioridade geracional. A MPB incr�vel j� tinha passado. Os Novos Baianos, que tamb�m eram incr�veis, j� tinham acontecido. N�o restava nada de qualidade, o Brasil tinha sido dizimado e parecia uma condena��o viver aqui”, desabafa Fernanda Torres.

Mas o p�blico daquele agosto de 1983 confiou na adapta��o sem atores famosos em seu elenco, e apareceu em peso no dia da estreia.

Houve confus�o no Centro Cultural S�o Paulo, onde “Feliz ano velho” teve a primeira temporada de tr�s semanas a pre�os populares. Com fila grande e a demora da abertura da bilheteria, a multid�o quebrou um dos pain�is de vidro que a separavam da porta do teatro.
 

'Naquele momento a gente ainda vivia uma ditadura, mas j� vislumbrava a abertura e tinha vontade de ser livre, de ser jovem e via essa possibilidade, porque o mundo n�o era mais t�o repressivo'

Paulo Betti, ator e diretor

 

Mergulho sem luz

�s nove da noite, o ator Marcos Frota surgiu em cena, s� de bermuda vermelha, agachado na frente do palco, que tinha escada no meio e dois trap�zios, um de cada lado. Ele descrevia o que o personagem sentiu imediatamente depois do mergulho que o deixou tetrapl�gico, quando percebeu que estava debaixo d'�gua e n�o tinha controle nenhum sobre seu corpo.

Enquanto falava o texto, Frota se levantava e ia andando em dire��o � escada de oito metros de altura, ent�o subia os degraus at� chegar ao mais alto. Em p�, l� em cima, com uma luz s� nele, abria os bra�os, fazia uma pose de mergulho e gritava: “A�, Gregor, eu vou descobrir o tesouro que voc� escondeu a� embaixo, seu milion�rio disfar�ado”.

Ent�o saltava de cabe�a e, antes que chegasse ao colch�o colocado no palco sem o p�blico notar, a luz era apagada. N�o dava para entender como aquilo era poss�vel.

Quando a luz acendia, o ator entrava em cena empurrando uma maca de hospital, se deitava em cima dela e ficava im�vel. A tens�o na plateia atingia o n�vel m�ximo, mas j� tinha ficado evidente, desde o salto mortal dado no escuro, que aquela pe�a ia, sim, “ultrapassar o n�vel do lacrimoso”, como temia o jornalista.

“'Feliz ano velho' tem dois ingredientes muito fortes. Tem a fragilidade da exist�ncia humana e o componente tr�gico pol�tico”, diz o diretor Paulo Betti. “Esses dois fatores – naquele momento em que a gente ainda vivia uma ditadura, mas j� vislumbrava a abertura e tinha vontade de ser livre, de ser jovem e via essa possibilidade, porque o mundo n�o era mais t�o repressivo – s�o os principais motivos do sucesso da pe�a.”

“Feliz ano velho” ficou cinco anos em cartaz e virou fen�meno pop. Quem viu no livro a possibilidade de transformar a obra em teatro foi o ator e ent�o l�der do movimento estudantil Marcos Kaloy.

“Estava buscando um texto que desse voz � ansiedade que a gente sentia, naquele momento de ditadura militar capenga, mas ainda l�”, afirma Kaloy, hoje vereador em Campinas (SP). “J� tinha o movimento despontando de um teatro mais alegre, principalmente no Rio de Janeiro com o Asdr�bal Trouxe o Trombone, que sa�a daquela coisa pesada, do teatr�o. Quando li o livro do Marcelo, achei o que estava procurando”, diz.

Kaloy chamou o dramaturgo Alcides Nogueira para fazer a adapta��o. “O livro tinha comovido o Brasil inteiro desde o dia do lan�amento e a hist�ria era muito tr�gica, tanto do filho quanto do pai. A� me veio uma ideia de contar as duas hist�rias em paralelo”, lembra Nogueira.
 
Fernanda Torres

Fernanda Torres interpreta Eunice Paiva no filme 'Ainda estou aqui', que est� sendo rodado atualmente

Instagram/reprodu��o
 

'Eu tinha uma sensa��o de inferioridade geracional. A MPB incr�vel j� tinha passado. Os Novos Baianos, que tamb�m eram incr�veis, j� tinham acontecido. N�o restava nada de qualidade, o Brasil tinha sido dizimado e parecia uma condena��o viver aqui'

Fernanda Torres, atriz, sobre os anos 1980

 
A atriz Lilia Cabral, que fazia v�rias personagens secund�rias, teve em “Feliz ano velho” a oportunidade de demonstrar o imenso talento, que hoje em dia todos conhecem. Em 1983, ela era rec�m-formada pela Escola de Artes Dram�ticas da USP.

“Peguei os pap�is que ningu�m queria fazer na pe�a. Eram pap�is pequenos, mas que eu explorava ao m�ximo”, conta a atriz, que fazia o p�blico rir e aplaudir suas atua��es como as enfermeiras do hospital, Elma e Ilma, que n�o eram irm�s, mas moravam juntas, e a professora de gin�stica com sotaque alem�o que Marcelo via pela TV da cama do hospital.

Drama, circo e samba

Durante os ensaios, Paulo Betti teve a ideia de transformar as cenas de hospital em circo, para suavizar o drama inerente a elas. O ator Adilson Barros, que interpretava Rubens Paiva e o m�dico, comp�s o “Samba da cadeira”, que cantava com Marcos Frota e as mulheres do elenco.

Marcelo Rubens Paiva, que tinha ambi��o de ser m�sico antes de sofrer o acidente, � filho do ex-deputado federal Rubens Paiva, cassado, exilado e depois preso e torturado at� a morte pelo regime militar.
 
Eunice e os cinco filhos, quatro meninas e o ca�ula, Marcelo, que tinha  7 anos quando o pai desapareceu, passaram d�cadas sem saber o que realmente tinha acontecido. Rubens Paiva virou uma figura emblem�tica da ditadura, o desaparecido com amigos intelectuais, gente conhecida e poderosa, mas que n�o p�de fazer nada para responder �s perguntas da fam�lia.

“Nos anos 1970, quando a mulher ficava vi�va ou era desquitada, passava a ser considerada amea�a para as outras mulheres, como se ela pudesse roubar o marido das mulheres casadas. Minha m�e teve que enfrentar isso, ainda por cima”, lembra Marcelo.

Eunice Paiva nunca quis que a vissem como v�tima, nem que seus filhos crescessem com pena de si mesmos. Essa atitude acabou adotada por Marcelo quando ficou tetrapl�gico, em 1979.

Foi convencido por Caio Graco, editor da extinta editora Brasiliense, a escrever sobre o acidente que sofrera aos 19 anos, quando foi passar o dia com amigos da faculdade na beira de um rio, subiu numa pedra, fez uma piada e mergulhou de cabe�a numa parte mais rasa do que ele imaginava.

Bateu a cabe�a, quebrou a quinta v�rtebra cervical e comprimiu a medula. Desde aquele 14 de dezembro, nunca mais andou, nem consegue movimentar seu corpo da cintura para baixo. Mas fez quest�o de n�o transformar seu livro numa trag�dia.

“Estava vivendo um momento de p�nico, mas sempre tive humor. Sempre adorei o Monty Phyton, era f� dos quadrinhos do Glauco, do Angeli”, conta Marcelo. “Descobri o tom do livro na primeira vez que fui ao centro de reabilita��o e percebi que os caras eram superdivertidos, sacanas, um empurrava o outro da cadeira, tinha fisioterapeuta que transava com cadeirante, enfermeiro casado com cadeirante”, diz o autor. “Quando voc� chega a um lugar de cadeira de rodas, fica todo mundo pensando em trag�dia, 'coitado do cara'. Isso � muito cansativo.”
 
Eunice e o deputado Rubens Paiva, desaparecido político, em foto de família

Eunice e o deputado Rubens Paiva, desaparecido pol�tico, em foto de fam�lia

Objetiva/reprodu��o
 

Elo refeito

H� algumas semanas, no bar Exit, em S�o Paulo, assisti ao show de estreia da banda Lost in Translation, idealizada por Marcelo Rubens Paiva, que encontrou na gaita uma forma de se reconectar com a m�sica, um elo que havia sido desfeito por causa do acidente que, anos atr�s, afetou o movimento de suas m�os.

Al�m de tocar o instrumento, Marcelo cantou suas tradu��es de letras de m�sicas de Lou Reed a Billie Eilish, David Bowie a Britney Spears. Voz e viol�o s�o de F�bio Fran�a, o Fabi�o, que aparece no segundo cap�tulo de “Feliz ano velho”, quando os dois fazem uma viagem ao Paraguai, aos 17, e acabam duros depois de noitadas nos cassinos.

Na cena final da pe�a “Feliz ano velho”, Marcelo est� deitado na cama de hospital e lembra � m�e que � dia 14 de dezembro de 1980 e faz um ano que ele sofreu o acidente. Eunice, interpretada por Denise Del Vecchio, est� sentada na cadeira de rodas do filho, experimentando a sensa��o de se locomover daquela forma.

“� estranho. Como deve estar sendo estranho para voc�, Marcelo. Mas voc� est� vivo, Marcelo. Vivo. E disso n�o se abdica. E disso tem que se tirar prazer”, dizia Eunice.
 
Ela pergunta ao filho se deveria desejar um feliz ano novo a ele, que responde que sim. Eunice se levanta, vai at� o rosto de Marcelo, passa a m�o na franja farta do menino e d� um beijo em sua testa. A luz se apaga lentamente e a m�sica suave come�a a tocar ao fundo. Fim. 
 
Atores Malu Mader e Marcos Breda

Malu Mader e Marcos Breda na adapta��o livre para o cinema de 'Feliz ano velho'

Universal/reprodu��o
 

FILME ESTREOU EM 1987

Da reda��o
 
Protagonizado por Marcos Breda e Malu Mader, o drama de fic��o 'Feliz ano velho', dirigido por Roberto Gervitz, chegou � telona em 1987. Baseado na autobiografia de Marcelo Rubens Paiva, conta a hist�ria de M�rio, filho de pol�tico perseguido pela ditadura militar que sofre acidente, fica parapl�gico e se torna autor de best-seller.
 
O longa ganhou seis pr�mios no Festival de Gramado – inclusive os Kikitos de melhor roteiro (Roberto Gervitz), melhor fotografia (Cesar Charlone) e o melhor filme na opini�o do p�blico. 
 
Lan�ado em 1982 pela Brasiliense, o romance de Paiva liderou a lista dos mais vendidos do Brasil por quatro anos. Atualmente, � editado pela Alfaguara.