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Estado de Minas

Marina Colasanti fala sobre envelhecimento e o papel da literatura sobre a vida

Aos 80 anos, a premiada escritora prepara dois novos livros, um para o p�blico adulto e outro infantojuvenil


10/11/2017 08:58 - atualizado 10/11/2017 09:00

'A palavra vem acoplada, vem depois. O meu instrumento de trabalho primeiro é o olhar: olho e comparo, olho e analiso, olho e chego perto', diz Marina Colasanti. (foto: Anagrama/Divulgação)
'A palavra vem acoplada, vem depois. O meu instrumento de trabalho primeiro � o olhar: olho e comparo, olho e analiso, olho e chego perto', diz Marina Colasanti. (foto: Anagrama/Divulga��o)

 

Marina Colasanti comemorou seus 80 anos com um grande jantar oferecido para familiares e amigos, em 26 de setembro, mas n�o encerrou as celebra��es no dia do anivers�rio. Na verdade, desde o in�cio do ano a escritora comemora a data redonda. Em 2017, ela lan�ou dois livros – Quando a primavera chegar, colet�nea de contos com ilustra��es pr�prias, e Tudo tem princ�pio e fim, com poesias para crian�as – e foi agraciada com o 13º Pr�mio Ibero-Americano SM de Literatura Infantil e Juvenil. No in�cio do ano, Marina recebeu a not�cia de que est� na lista de 33 autores do mundo inteiro indicados para receber o Pr�mio Hans Christian Andersen, que ser� entregue ao vencedor em mar�o de 2018.


Para 2018, ali�s, Marina tem muitos planos. Um livro de poesias para adultos e outro para crian�as, com ilustra��es do artista Rubem Grilo, est�o perto de ir para o prelo. Fazer 80 anos, lembra a autora, n�o � algo que aconte�a de repente. “A gente vai avan�ando na vida e, de repente, chega a um ponto que, por conven��es e por quest�es f�sicas, � um marco, mas o pensamento vem amadurecendo ao longo do caminho”, explica.

A autora acredita que se fala pouco na morte e no envelhecimento nos dias de hoje, principalmente quando se trata de jovens e crian�as. H� mais celebra��o da vida em forma de festa do que dos aspectos finitos que ela compreende. E isso pode ser um problema. “Essa vida em que tudo tem que ser realizado, em que est�o o tempo inteiro dizendo que voc� tem que realizar seus sonhos, essa vida afastou os jovens, e sobretudo as crian�as e adolescentes, da realidade inalter�vel que � a morte, o adoecimento, o problema, o impedimento, a guerra”, diz. “A compreens�o e aceita��o do sofrimento n�o � a nega��o. A aceita��o � a vida. Porque faz parte.”

 

 

Marina teve conhecimento da morte e do sofrimento muito cedo. Filha de italianos nascida na Eritreia, morou em Tr�poli (L�bia) quando crian�a e passou parte da inf�ncia na It�lia, num momento de p�s-guerra em que havia escassez de quase tudo. Quando veio para o Brasil, em 1948, aos 11 anos, se espantou com algumas coisas, como a abund�ncia de comida e seu desperd�cio. Foi como jornalista, nos anos 1960, que deu os primeiros passos como escritora.

Das cr�nicas e contos publicados no Jornal do Brasil e na revista Nova �s hist�rias infantojuvenis e de poesia, a literatura se instalou e rendeu mais de 70 livros. Marina j� ganhou pr�mios como o Jabuti (seis, no total), o Portugal Telecom (hoje Oceanos), o Origenes Lessa (tr�s) e outros que fazem parte de uma lista de 44 premia��es. Casada com o tamb�m escritor Affonso Romano de Sant’Anna, a autora n�o mede palavras para falar da qualidade da produ��o liter�ria para jovens no Brasil, na entrevista a seguir.

Escrever poesia para crian�a � diferente de escrever para adulto?
�. Quando trabalho poesia para crian�a, gosto de introduzir rimas com mais frequ�ncia, gosto de uma batida mais sincopada, porque acho que isso ajuda na memoriza��o, e memorizar � �til, � um exerc�cio cerebral. Quando fa�o um livro de poesia para crian�a, alterno poemas, digamos, verticais com poemas mais jocosos, que estejam mais vis�veis no universo da crian�a, que participem do cotidiano. O medo do desamor, da morte, isso nasce com o ser humano. Est�o sempre ali, mas s�o menos vis�veis do que um p� de sapato sozinho, ao p� da cama, que � uma coisa que acontece com qualquer crian�a.

S�o mais de 70 livros, 44 pr�mios, 20 teses escritas sobre o seu trabalho. O que a alimenta e inspira? Onde est�o as boas hist�rias?
Eu olho. Olho muito. Presto uma aten��o de bode na canoa. Presto muita aten��o na vida. Minha arma de trabalho � o olhar. A palavra vem acoplada, vem depois. O meu instrumento de trabalho primeiro � o olhar: olho e comparo, olho e analiso, olho e chego perto. Gosto muito de olhar o pequeno, gosto de olhar aquilo que as pessoas n�o est�o reparando.

Escrever para crian�as e jovens � profiss�o, n�o � ocupa��o. Voc� frisa sempre que n�o � algo que faz porque � m�e ou av�. Temos dificuldade em compreender isso no Brasil?
N�o conhe�o a fundo a literatura infantil de outros pa�ses, mas posso fazer uma an�lise da nossa produ��o porque volta e meia sou jurada, vou a muitas feiras e tal. A nossa produ��o para a inf�ncia � muito ruim. Temos autores estupendos, ilustradores bel�ssimos e conseguimos melhorar os padr�es f�sicos dos nossos livros. Mas se publica muito lixo. Muito passarinho, muito gatinho. E s�o safras. Tivemos a safra da ecologia, muitos livros ‘ensinosos’, o ano passado foi a safra do vov� com Alzheimer. S�o temas que est�o na moda. Certamente, teremos este ano 800 livros de bullying. S�o os temas na moda e que as editoras buscam, solicitam a determinados autores. Ou determinados autores se interessam por esses temas porque sabem que ser�o bem-aceitos. Mas o n�vel, o grosso da produ��o, � muito fraco.

 

� um problema da tem�tica ou da qualidade? Por que � ruim?
Porque n�o tem qualidade de texto. Convencionou-se que, para falar para crian�as, o coloquial � a maneira melhor e, quanto mais parecido com a fala da crian�a, mais ela vai gostar. O que absolutamente n�o � verdade. Por um lado, n�o tem qualidade de texto. Trabalha-se com palavras do cotidiano, usam-se muitos lugares-comuns, f�rmulas de escrita. E n�o tem conte�do. Uma hist�ria da gata que ficou doente e vai ao veterin�rio e n�o estava doente, estava gr�vida – veja s�, acabei de fabricar uma hist�ria – n�o � uma hist�ria, isso n�o � nada. N�o tem conte�do, n�o tem reflex�o, n�o tem filosofia. Ent�o fica um livro pobre.

Isso tem a ver com o fato de lermos pouco?
Grandemente. Lemos pouco e n�o temos a consci�ncia de que n�o � porque a pessoa sabe grafar palavras que � escritor. A vozinha que conta hist�rias para os netos e que vem me dizer que publicou um livrinho – porque ela chama assim e nem isso chega a ser – n�o pensa, por exemplo, em subir no palco e representar Lady Macbeth, porque essa � uma profiss�o de atores. Escrever, no conceito de tantas pessoas e de muitos editores, n�o � uma fun��o de escritor. Qualquer um pode escrever.

Voc� e Affonso gostam muito de arte, e ele, inclusive, escreve sobre isso. Voc� tem acompanhado essa situa��o de fechamento de exposi��o e censura em museus?
Nesses fatos, tem v�rios elementos misturados. Um deles � que estamos em um momento de exacerba��o pol�tica muito grande por causa das elei��es, por causa do descr�dito da pol�tica, porque, toda vez que h� um descr�dito, aparecem os santos e os populistas gritando “pecado, pecado”. E temos um desconhecimento. Houve um equ�voco da entidade financiadora (caso do Santander e da exposi��o Queermuseu) porque quem financia tem que saber se o produto que est� financiando est� de acordo com a imagem de seus consumidores ou n�o. E tem o fato em si. Hoje em dia, qualquer atitude ou qualquer nudez est� valendo. Ent�o fica dif�cil dizer isso n�o pode e isso pode, porque, a partir da p�s-modernidade, liberou geral. Se a Marina Abramovic fica deitada numa mesa cheia de ferramentas cortantes e o p�blico est� autorizado, e o momento art�stico � esse, a intervir no seu corpo, por que o core�grafo de La b�te (performance com homem nu no MAM/SP) n�o podia fazer essa interven��o no pr�prio corpo ligada a uma obra da Ligia Clark? Ele estava se posicionando como uma escultura m�vel. Se aceitamos uma coisa, por que n�o aceitamos a outra?

Por qu�?
S�o v�rias quest�es. H� um momento de acirramento quase religioso, est�o aparecendo muitas persegui��es a religi�es afro-brasileiras, o Brasil n�o consegue se decidir sobre essa quest�o de ser um pa�s laico. A Fran�a tem isso muito claro e estabelece isso em toda e qualquer oportunidade. No Brasil, somos laicos, mas temos crucifixos em toda parte, temos muitos feriados religiosos e n�o protegemos da mesma maneira todas as religi�es. A tend�ncia � proteger as mais fortes, as que t�m bancada no Congresso ou que t�m for�a por entidades internacionais, como a Igreja Cat�lica e a protestante, que s�o universais. Ent�o, grupos religiosos tamb�m se arvoram a cr�ticos da arte. E fica muito complicado.

Como argumentar com a afirma��o “isso n�o � arte”, que tem se tornado comum para apontar trabalhos como os das exposi��es e obras censuradas?

� um princ�pio de conversa que demonstra que a pessoa n�o andou lendo nadinha sobre os conceitos de arte da p�s-modernidade. Falta educa��o art�stica no Brasil. Falta de todo tipo, e a art�stica ent�o � considerada de uma irrelev�ncia, de uma inutilidade enormes. Temos o carnaval, por que precisamos de mais, n�o � mesmo? As pessoas n�o t�m o menor conhecimento do que seja arte. O conceito de arte n�o existe. E seria f�cil hoje ter educa��o art�stica, porque os museus do mundo inteiro est�o na internet, voc� pode mostrar aos jovens e �s crian�as sem ter que sair da sua escola.

Temas como o envelhecimento e a finitude da vida s�o importantes na literatura infantojuvenil? Por qu�?
Os jovens passaram a ter uma vida, de certa forma, mais f�cil, que foi vindo com a modernidade, com o passar dos s�culos e dos anos. � uma vida onde o desejo est� acima de tudo, tanto o desejo de objetos quanto o desejo sexual. Se a pessoa n�o vive dentro de uma guerra, como estamos vivendo agora na Rocinha, por exemplo, ela n�o traz a imin�ncia da guerra, o perigo da guerra, a dificuldade da guerra dentro de si, porque seus parentes, seus pais, seus av�s, seus tios n�o passaram por isso e n�o lhe transmitem isso. Essa � uma sociedade do prazer, do entretenimento, do have fun, do divirta-se. Muita selfie, muita foto e o prazer em dose m�xima.

O que perdemos com isso?
Perdemos a compreens�o do outro que est� sofrendo, perdemos a viv�ncia anterior da doen�a, da morte, da precariedade das coisas, perdemos a verticalidade da vida. A vida n�o � horizontal, a vida � vertical. Ningu�m mais acompanha a morte, a morte n�o ocorre em casa, n�o se vela em casa. Eu vi v�rias pessoas morrerem, mas isso � uma coisa da minha gera��o.


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