
Na juventude, Fernanda Torres se encantou por Gustave Flaubert (1821-1880). “Fui marcada pela acidez dele, pelo pessimismo, pelo interesse no erro e no equ�voco da humanidade”, diz. Dona de sarcasmo e ironia, a atriz e escritora lan�a seu segundo romance, A gl�ria e seu cortejo de horrores, depois de estrear no g�nero com Fim, ambos pela Companhia das Letras. Fernanda � autora tamb�m de Sete anos, livro de cr�nicas. Em A gl�ria..., ela conta a hist�ria de Mario Cardoso, ator que passa pela TV, cinema e teatro no Rio de Janeiro, na d�cada de 1960. Com escrita inconfund�vel, Fernanda remonta n�o s� ao panorama das artes e das coxias, que conhece desde a inf�ncia, pois � filha dos atores Fernanda Montenegro e Fernando Torres, como tamb�m tra�a um retrato da cultura brasileira.Nesta entrevista, a atriz e escritora fala do horror � palavra celebridade, lamenta a vilaniza��o das religi�es africanas e pondera sobre miscigena��o. “� preciso uma radicaliza��o violenta para voltarmos a nos enxergar como sincr�ticos e miscigenados, caracter�sticas fundadoras do Brasil”, afirma.
A gl�ria e seu cortejo de horrores � o seu segundo romance e terceiro livro. Como voc� caracteriza este momento de sua escrita?
Venci barreira complicada, que � a de dar conta de um segundo romance depois de um primeiro bem recebido. Demorei muito at� ordenar as ideias, escrevi pulado, um cap�tulo aqui, outro ali, antes mesmo de o personagem se definir ator. Foi um processo muito diferente do Fim, que me veio de enfiada, que se escreveu quase por si s�. Olho o Gl�ria..., o Fim, e penso no que falta aos dois, no que gostaria de lidar para frente, no que me serviria de companhia, porque os livros se fazem no tempo, e voc� s� conta com uma certa intui��o. O Cristov�o Tezza diz que os livros s�o intrusos, eles se metem em voc�, insistem em surgir, e � preciso humildade, calma e paci�ncia para que eles saiam, se formem, sem afoba��o.
Como a narrativa estabelece uma rela��o entre a arte e a hist�ria do Brasil?
Foi quase um efeito colateral do Gl�ria.... Queria falar sobre a pot�ncia que o teatro teve, e que n�o tem mais, de formador de opini�o, de agente de transforma��o na sociedade. Vivi isso, a revolu��o que foi a apari��o do Asdr�bal, do Macuna�ma do Antunes, a chegada do Gerald Thomas. E sempre lamentei n�o ter visto O rei da vela, Galileu Galilei, tudo o que o Z� Celso produziu quando eu usava fralda. Queria fazer essa retrospectiva, entender, atrav�s do Mario, em que momento a arte perdeu essa pot�ncia. Conforme escrevia, as descri��es do que estava em volta do personagem, o bairro populoso que se formou no entorno da cabeceira da pista do aeroporto de Congonhas. A transforma��o do sub�rbio carioca, a evangeliza��o do Brasil, a revolu��o da internet, o hedonismo que se seguiu � abertura pol�tica p�s-ditadura, tudo isso veio a reboque. Percebi que havia contado a hist�ria das transforma��es sociais, pol�ticas e econ�micas que haviam transcorrido no Brasil nas �ltimas quatro d�cadas. N�o h� pa�s independente da sua cultura, que � o esp�rito de um pa�s.
Voc� apresenta a hist�ria de Mario Cardoso, um jovem aspirante a ator no Rio de Janeiro. Em que medida sua proximidade com o palco e a televis�o, desde a inf�ncia, ajudou na ambienta��o do romance?
Por ser filha dos meus pais e ter convivido com gera��es anteriores � minha, tenho uma mem�ria estendida do teatro, que vai de Dulcina, de Proc�pio, at� Paulo Gustavo. � claro que, no Gl�ria..., estava falando de algo pr�ximo a mim, de fatos que testemunhei, mas tamb�m de uma mem�ria que herdei, por via oral, de atores com quem convivi, em especial do S�rgio Britto. Ele pontua o livro todo, o S�rgio fez o Lear do primeiro cap�tulo, fez teatro com Vitor Garcia, fez Tango, com Renata Sorrah, ele est� muito presente no livro. Mas hoje, quando penso no quanto o Gl�ria... est� ligado, ou n�o, � minha experi�ncia, concluo que o Fim � t�o autobiogr�fico quanto esse.
Desde cedo, voc� lida com o reconhecimento, tanto seu como de seus pais. Quando escolhe a frase de sua m�e para o subt�tulo – A gl�ria e seu cortejo de horrores –, � uma cr�tica ao universo da fama?
Ignoro o processo da fama e do sucesso quando escrevo, atuo. N�o penso nisso, penso no of�cio mesmo, no fazer. Celebridade � a palavra que mais desprezo em todo o universo das palavras. Tenho horror dessa palavra, do vazio que ela representa. Um artista n�o � uma celebridade, ele � um artista, n�o � a fama que o move, mas algo muito mais profundo. O que move um artista � a necessidade de se expressar, de traduzir o mundo, de se comunicar, de chegar ao outro. A frase n�o diz respeito � fama, mas � press�o que se segue a uma grande realiza��o. Existe uma ansiedade imensa na vida p�blica, na exposi��o, na express�o, que nada tem a ver com ficar famoso, ter sucesso, � de outra natureza.
Como foi construir narrador masculino, Mario, de 60 anos?
Costumo dizer que n�o tenho lugar da fala, tenho lugar do falo, e de falos sexagen�rios, o que � um pouco estranho. O Mario veio assim, nasceu homem e maduro, nem pensei. Meu editor na �poca, o Fl�vio Moura, leu um cap�tulo e me escreveu: outro homem... interessante. S� ent�o percebi que havia escrito outro homem, isso nem me pareceu relevante, quando apontei o cap�tulo da Tijuca. Acho que � mais f�cil me travestir, me afastar de mim na pele de um homem, me ajuda a chegar na literatura, a n�o ser confessional. Eu sou muito sarc�stica quando escrevo, muito ir�nica, e, talvez, me sinta mais livre de ser assim com um homem do que com uma mulher. As mulheres est�o passando por um momento de afirma��o, � uma hora importante, e ser �cida com uma mulher poderia ser problem�tico. O homem branco, hoje, � o gen�rico do humano equivocado, o que me atrai. � um bom desafio futuro escrever uma mulher que n�o sou eu. Quem sabe chego l�.
Estamos passando por um momento de volta � censura �s artes no Brasil. H� a ascens�o do conservadorismo. Voc� sempre foi uma voz pela liberdade de costumes e pensamento. O que pode ser feito para evitar retrocessos?
Cresci num pa�s miscigenado e sincr�tico, isso n�o define mais o Brasil. Estamos passando por um processo de evangeliza��o, de radicaliza��o de discursos – � direita e � esquerda. Existe uma corrente puritana, vinda dos americanos do Norte, que est� se tornando uma realidade aqui. Discute-se a fronteira entre o flerte e o ass�dio; deu-se um basta ao para�so miscigenado, que at� ontem definia o Brasil, chegou-se � conclus�o pertinente de que esse para�so servia para esconder o racismo. Existe avan�o e retrocesso, tudo junto, ao mesmo tempo. Nunca vivi algo assim, n�o tenho resposta, o Brasil � muito diferente, hoje, do que achei que seria na minha juventude. Talvez seja preciso uma radicaliza��o violenta para voltarmos a nos enxergar como sincr�ticos e miscigenados, caracter�sticas fundadoras do Brasil. Mas n�o h� garantia, estamos em pleno mar.
Voc� se abriu ao di�logo em decorr�ncia de um artigo sobre feminismo que publicou no jornal Folha de S.Paulo e causou muita pol�mica. Como v� as reivindica��es de grupos identit�rios?
O feminismo, para mim, era algo conquistado. Vim de uma fam�lia com mulheres empoderadas, atrizes, m�es de santo, matriarcas. Jamais me senti acuada, com medo ou obrigada a aceitar a aproxima��o de um homem. Mas o feminismo, hoje, � solid�rio. Ele n�o trata apenas de um nicho, Zona Sul, de mulheres livres para ir e vir. Ele deseja mudar os paradigmas de uma sociedade que mata mulheres a tr�s por quatro, que bate, assedia, acua. N�o � hora de falar da exce��o, isso foi o que de mais claro me ficou daquele epis�dio. Fui apresentada, ali, ao novo feminismo, engajado, que deseja promover mudan�as gerais e irrestritas em todas as camadas sociais, nas empresas, na legisla��o, na pol�tica.

A GL�RIA E SEU CORTEJO DE HORRORES
• De Fernanda Torres
• Companhia das Letras
• 216 p�ginas
• R$ 44,90 e R$ 29,90 (e-book)