Em dois novos livros, Patti Smith celebra a vida e honra os mortos
Cantora, compositora e escritora americana, que veio ao Brasil lan�ar 'Devo��o' e 'O ano do macaco', aconselha os jovens a serem livres e a proteger a natureza dos pol�ticos
Patti Smith durante show no Popload Festival, na capital paulista (foto: Fotos: Fabr�cio Vianna/divulga��o)
“Aqueles que partiram, que voc� ama e de quem sente saudade est�o com voc� agora”, garantiu Patti Smith, com ares de profetisa, ao p�blico que foi v�-la cantar no Popload Festival, em S�o Paulo, no �ltimo fim de semana. A plateia, majoritariamente jovem, provavelmente ainda n�o experimentou muitos lutos. A lembran�a dos que j� n�o est�o presentes poderia parecer meio fora de lugar num show-celebra��o, com oferta de seus principais sucessos e covers de cl�ssicos. Mas, sendo ali Patti Smith, cantora, escritora americana, poeta e �cone do punk-rock, era de se esperar que os mortos n�o ficassem fora da festa.
A morte � inspira��o e tema recorrente em seus livros. O mais recente, O ano do macaco (Companhia das Letras), fala da perda de amigos antigos e da passagem do tempo para ela mesma. O processo de escrita se deu em 2016, quando Patti, de 72 anos, estava prestes a completar 70. “S� um n�mero, mas um indicativo da passagem de uma parte significativa da areia prevista na ampulheta. Os gr�os caem e eu me vejo sentindo falta dos mortos, mais do que o normal”, registrou.
Terceiro t�tulo de mem�rias da artista, O ano do macaco volta a mostrar a excel�ncia de sua prosa, enquanto ela se desloca de cidade em cidade, da Costa Oeste � Costa Leste dos EUA, evocando autores e livros queridos e descrevendo o processo de perda de personagens importantes de sua vida, como o dramaturgo Sam Shepard, com quem teve um romance na juventude, e o produtor musical Sandy Pearlman. O pano de fundo � a corrida eleitoral de Donald Trump, cujo nome ela evita citar.
O sentimento ao se dirigir para o vel�rio de Pearlman � definido como “uma onda de amargura irracional”, e serve para sua rea��o ao notici�rio televisivo e d� pistas da iminente vit�ria do candidato republicano. Permeando tudo, limites nublados entre a fic��o e a realidade. Patti se move em dire��o a livros que ama desde a inf�ncia, como Alice no Pa�s das Maravilhas e Pin�quio. Como nessas hist�rias, apesar dos reveses, sobressai uma atmosfera de sonho e de esperan�a, at�.
Cap�tulo ap�s cap�tulo, a autora � confrontada pela esperteza de uma placa luminosa falante, que faz as vezes da lagarta. Sim, uma placa de hotel, objeto inanimado, tal qual o boneco de madeira de Geppetto, torna-se magicamente capaz de se expressar. A atmosfera on�rica chega a confundir o leitor, como se ele sonhasse tamb�m.
Talvez por isso, o manuscrito n�o tenha agradado de imediato a editora, que sugeriu modifica��es. Vinte por cento do texto foi alterado, mas Patti quis insistir em mesclar as palavras da narradora, entre o que viveu dormindo e acordada.
Sonhos e filmes
Em S�o Paulo, Patti revelou que seus sonhos s�o v�vidos, como se fossem filmes, os quais ela anota num di�rio, mantido com disciplina. Coincidentemente, o in�cio do show foi com o verso I was dreaming in my dreaming (eu estava sonhando em meus sonhos), da letra de People have the power, m�sica dos anos 1980 – na medida para embalar os protestos contempor�neos. O novo livro que ela est� escrevendo, revelou, � o mais abstrato de todos que j� lan�ou.
Gradativamente, Patti tem se aproximado do surrealismo, a cada nova publica��o. O primeiro e mais famoso, S� garotos (Companhia das Letras), lan�ado em 2010, � calcado na realidade, respeitando nomes, locais e datas ver�dicas. O t�tulo surgiu de um desejo de Robert Mapplethorpe, namorado de Patti, antes de se revelar gay, seu melhor amigo para a vida toda. Fot�grafo mundialmente reconhecido, Mapplethorpe pediu que ela escrevesse a hist�ria dos dois antes de se tornarem famosos, na decadente Manhattan da d�cada de 1970.
Patti prometeu e cumpriu: dedicou a obra a desvendar a m�gica do encontro mais definitivo de sua vida e carreira, desde os primeiros dias de anonimato, passando pela notoriedade de ambos, at� ele morrer de Aids, em 1989.
O t�tulo seguinte, Linha M (Companhia das Letras), de 2015, � homenagem ao casamento com o guitarrista Fred Sonic Smith e o luto por ele, que morreu em 1994. Um tributo a seu segundo amor, como ela definiu, colocando Mapplethorpe como o primeiro.
A narrativa � um vaiv�m entre o passado e o presente, entre x�caras de caf�, programas de detetive na TV e detalhes de sua dedica��o aos artistas que ama. Mais uma vez, um livro nasce da necessidade de honrar os mortos. E, nesse caso, n�o s� o marido. Patti tamb�m homenageia o irm�o, que faleceu no mesmo ano, e reconta sua peregrina��o aos t�mulos de seus �dolos, como o diretor de cinema Akira Kurosawa, no Jap�o, e o poeta Rimbaud e o cantor americano Jim Morrison, enterrados na Fran�a.
Jean Genet, o �dolo
Ao lan�ar O ano do macaco em S�o Paulo, Patti contou sobre sua paix�o por Jean Genet, autor do cl�ssico Di�rio de um ladr�o, grande influ�ncia em sua escrita. Por Genet, ela foi mais longe: primeiro, na companhia do marido, nos anos 1980, viajou � Guiana Francesa, col�nia penal que era o destino de marginais franceses.
Embora Genet, com sua vida de delitos, fosse candidato �quela pris�o na Am�rica, acabou cumprindo pena na pris�o de Fresnes, em seu pa�s de origem, o que considerou uma humilha��o. Para corrigir isso, Patti recolheu pedras na Guiana e as levou, depois de vi�va, at� o t�mulo do escritor, no Marrocos. Essa hist�ria, detalhada em Linha M, arrancou palmas dos leitores brasileiros. “Que bom contar com a aprova��o de voc�s. A maioria das pessoas me acha louca por causa disso”, revelou.
Completando os lan�amentos brasileiros de Patti neste novembro, Devo��o (Companhia das Letras) � um h�brido de n�o fic��o e fic��o, mas com limite n�tido. A primeira parte conta sobre o processo de escrita, a segunda � uma hist�ria ficcional curta. A certa altura, ela escreve: “Os jovens quando dormem parecem lindos, os velhos, como eu, parecem mortos”.
Os gr�os da ampulheta passam por Patti Smith. Mas ela e sua obra continuam potentes, como no auge da juventude. � assim que essa americana cativa f�s de sua escrita e m�sica, mostrando que n�o h� loucura em salvar os mortos do esquecimento. Ao mesmo tempo, celebra a vida. E aconselha os jovens a serem saud�veis, livres e a proteger a natureza da maldade de pol�ticos que n�o merecem ter o nome citado.
Como boa sonhadora, �s v�speras de completar 73 anos, seu otimismo resiste �s perdas. Nas �ltimas p�ginas de O ano do macaco, Patti Smith escreve: “Sam est� morto. Meu irm�o est� morto. Minha m�e est� morta. Meu pai est� morto. Meu marido est� morto. Meu gato est� morto. E meu cachorro que morreu em 1957 continua morto. E ainda assim, eu continuo a achar que alguma coisa maravilhosa est� para acontecer.”
O ANO DO MACACO
De Patti Smith
Companhia das Letras
168 p�ginas
R$ 49,90
DEVO��O
De Patti Smith
Companhia das Letras
144 p�ginas
R$ 39,90
R$ 27,90 (e-book)
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