
Seguir ou n�o seguir os passos dos pais? Cristina Abranches, de 58 anos, nunca enxergou outro caminho. Assim como a m�e, foi fisgada pelo trabalho social e dedica sua vida a ajudar pessoas com defici�ncia. A psic�loga n�o s� deu continuidade ao legado da inspetora de ensino Elza Kriemilda Abranches Batista, que fundou a Associa��o de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae) de Contagem – hoje Centro de Atendimento e Inclus�o Social (Cais) –, como transformou a institui��o em refer�ncia nacional em inclus�o. Seguindo metodologias revolucion�rias, o Cais trabalha para inserir pessoas com defici�ncia no mercado de trabalho e nas escolas, e oferece atendimentos cl�nicos gratuitos.
Qual � a miss�o do Cais?
Trabalhamos com atendimento especializado para favorecer a inclus�o e mudar o olhar em rela��o ao deficiente. Queremos mudar a sociedade. Que todos percebam que estas pessoas s�o capazes, que merecem respeito e reconhecimento. A cada professor que formamos, mudamos 30 alunos. A cada empresa que convencemos a contratar uma pessoa com defici�ncia, estamos mudando 1.000 funcion�rios. Cada fam�lia que passa a lutar pela inclus�o do filho n�o vai ficar acomodada com uma sociedade que n�o � inclusiva, e tamb�m vai provocar mudan�a.
A hist�ria come�ou com a sua m�e. Como ela se envolveu com esta causa?
A minha m�e era inspetora de ensino em Uberl�ndia. Ela veio a Belo Horizonte para fazer um curso com a dona Helena Antipoff, uma russa que estava no Brasil para melhorar a educa��o, na �poca do governo Get�lio Vargas. A� dona Helena convidou minha m�e para trabalhar na Fazenda do Ros�rio, em Ibirit�, que hoje � a Funda��o Helena Antipoff. Dona Helena foi quem fundou a primeira Pestalozzi e cunhou o termo excepcional. A minha m�e veio dirigir um dos equipamentos do complexo, que se chamava artesanato, voltado para a educa��o de jovens da zona rural. Dona Helena era muito preocupada com a empregabilidade.
Ent�o, voc� viu o Cais nascer.
A minha hist�ria se mistura com a do Cais. Nasci na �poca em que minha m�e trabalhava na Fazenda do Ros�rio. Ela continuou como inspetora de ensino e alguns pais pediram para fundar uma Apae em Contagem, em 1971. Eu era menina e me lembro dela se movimentando para montar a institui��o. Levou um tempo para a minha m�e colocar tudo para funcionar e ter recursos para os atendimentos. S� em 1980 ela conseguiu os primeiros conv�nios. Lembro-me de o telefone tocar para avisar sobre o conv�nio com a Legi�o Brasileira de Assist�ncia (LBA) e a minha m�e comemorar que ia conseguir pagar os funcion�rios. O trabalho come�ou com 20 crian�as. Na �poca, n�o se falava em inclus�o, s� existia escola especial. Dona Helena foi a primeira a se preocupar com a profissionaliza��o, em dar autonomia para as pessoas com defici�ncia, e a institui��o nasceu com esse prop�sito.
Quais foram os desafios dos primeiros anos da institui��o?
Passamos de uma casa alugada no Centro para um espa�o cedido pelo estado, sob comodato, no Bairro �gua Branca, onde estamos desde 1984. Eram galp�es muito velhos, cercados por arame farpado. Pessoas passavam e jogavam pedra, diziam que era escola de doido. N�o tinha forro e, quando chovia muito, descia terra e as salas ficavam sujas, era um sufoco. Era um lugar de dif�cil manuten��o e precis�vamos de doa��o at� para dar comida para as pessoas atendidas, que passavam muita fome. Em 1990, conseguimos uma doa��o maior com uma rifa de carro. O carro ficou na Pra�a Sete, para voc� ter uma ideia, e a rifa circulou nacionalmente. Isso era comum para institui��es sem fins lucrativos. Assim, entrou um recurso significativo. Pudemos arrumar o espa�o e passamos a ter consult�rios. Antes, s� t�nhamos assist�ncia social, psicologia e pedagogia. Com esse dinheiro, tivemos a possibilidade de montar uma cl�nica mais integrada e oferecer um atendimento melhor, com fisioterapia e fonoaudiologia.
"O benef�cio de estar em uma escola comum � imensur�vel. Estar fora s� vai agravar a defici�ncia, a perda � muito significativa."
Voc� sempre quis seguir os passos da sua m�e?
Apesar de saber que queria estudar psicologia, achava que n�o iria trabalhar na Apae. Mas comecei como volunt�ria e fiquei. Formei-me em psicologia e segui os passos de dona Helena e da minha m�e. Fiz est�gio em Paris com a psicanalista Maud Mannoni, que tinha uma preocupa��o com atendimento em equipe e inclus�o. Em 1990, assumi a coordena��o cl�nica e, quatro anos depois, a superintend�ncia. Maud Mannoni foi a refer�ncia para pensar a institui��o. Vi que era poss�vel fazer um trabalho de primeiro mundo no Brasil, porque n�o havia tanta diferen�a em termos de estrutura.
O que pesou mais na sua decis�o de assumir a institui��o?
Na �poca, eu tinha um cargo no estado e o meu consult�rio, mas o trabalho social foi o que mais me pegou. N�o consegui mais sair. Fiz mestrado, doutorado e at� p�s-doutorado sobre inclus�o e essa passou a ser o nosso forte, o que tanto fez a minha m�e querer manter a institui��o, e eu querer estar l�. Descobri a possibilidade de fazer um trabalho significativo para muita gente e de ter uma realiza��o profissional muito grande. Quer�amos ser um lugar de pesquisa e investimento em qualidade.
Quem pode ter acesso aos atendimentos?
Priorizamos defici�ncia intelectual e autismo no atendimento cl�nico, al�m de prematuros e beb�s com alguma intercorr�ncia no nascimento. H� dois anos, passamos a atender tamb�m crian�as com transtorno do d�ficit de aten��o com hiperatividade (TDAH). Todos pelo Sistema �nico de Sa�de (SUS). Na parte de inclus�o no mercado de trabalho, aceitamos todo tipo de defici�ncia.
Em qual momento voc�s decidiram mudar de nome (Apae para Cais)?
O nome Apae nos colocava em um grupo que n�o tinha o mesmo prop�sito, que era trabalhar com inclus�o. Al�m disso, na maternidade, quando fal�vamos para a m�e procurar a Apae, ela entrava em desespero, achando que o filho tinha uma defici�ncia. Por isso, uma das portas da sede j� tinha o nome Cais para n�o causar este impacto. Descobrimos que as crian�as e os jovens tamb�m n�o usavam o nome Apae. Ent�o, n�o fazia sentido manter um nome com o qual as pessoas atendidas n�o se identificavam. Chegou uma hora em que tivemos que assumir outro nome, com um certo medo, porque Apae � muito conhecida. Isso foi em 2012.
A inclus�o no mercado de trabalho � um dos pilares do Cais. Como funciona?
Fomos pioneiros em inclus�o no mercado de trabalho. Quase todas as institui��es seguiam o modelo de oficina protegida, em que a pessoa desenvolvia atividades na pr�pria institui��o. Na �poca, era muito comum fazer vassoura ou marcenaria. Mas a gente sempre quis ter um modelo diferente, em que as pessoas sa�ssem de dentro das institui��es. Em 1996, fui convidada para escrever um manual para a Federa��o Nacional das Apaes sobre inclus�o no trabalho de pessoas com defici�ncia. Sete colaboradores se juntaram, e uma delas tinha voltado dos Estados Unidos e apresentou o modelo de emprego apoiado. A pessoa n�o tem condi��o de se colocar no mercado de trabalho e, por outro lado, a empresa n�o sabe lidar com o deficiente, ent�o entra uma equipe para mediar esta rela��o. Por isso o nome emprego apoiado, apoiamos o trabalhador e as empresas. Esse modelo que adotamos era bem revolucion�rio.
O que mudou de l� pra c�?
No in�cio, as empresas eram muito resistentes. Lembro-me de um empres�rio que virou para mim e falou: ‘Me desculpa, mas ser� que estas pessoas n�o ficam s� babando, s�o agressivas?’. Eu batia na porta, insistia, vamos tentar fazer uma experi�ncia, criava formas de os gestores conhecerem as capacidades dessas pessoas. Assim fomos abrindo portas. Quando o Minist�rio P�blico do Trabalho tornou obrigat�ria a contrata��o de pessoas com defici�ncia, com possibilidade de multa, o nosso trabalho teve respaldo. Mas hoje o �rg�o foi desmantelado e estamos perdendo o que estava sendo constru�do.
Como a inclus�o no mercado de trabalho transforma a vida dessas pessoas?
Na verdade, muda a vida de todos os envolvidos. Os pais enxergam que os filhos podem ter emprego e sal�rio. O grande medo das fam�lias � que as pessoas com defici�ncia sejam um eterno dependente. A institui��o vira outra, os profissionais ficam mais motivados, tudo se torna mais vigoroso. Sem a possibilidade de autonomia, � como se todo o trabalho cl�nico perdesse o sentido, n�o valesse nada. Digo que as pessoas desabrocham quando t�m interesse pela vida, desejos, sonhos, planos e de fato ganham autonomia. � imensur�vel o ganho com esta oportunidade. Temos casos de pessoas que se casaram, que t�m filhos, que se tornaram arrimo de fam�lia, que puderam realizar o sonho dos pais de comprar um s�tio, e falam isso com muito orgulho. J� inserimos mais de 350 pessoas no mercado de trabalho.
O Cais tamb�m defende a inclus�o nas escolas. Como chegaram ao modelo atual?
T�nhamos uma pesquisa na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em que as escolas nos encaminhavam crian�as com dificuldade de aprendizagem. Est�vamos no meio da pesquisa quando percebemos que, em vez de ficar neste papel de diagnosticar defici�ncias, era melhor trabalhar direto com as escolas. Come�amos a propor um trabalho chamado de equipe itinerante, numa �poca em que pouqu�ssimas escolas eram inclusivas. Foi muito desafiador. Quando apresentamos a ideia para os pais, alguns n�o queriam que os filhos fossem para a escola. Mas n�o pod�amos ser coniventes com escolas que n�o querem receber esses alunos, que dizem que n�o est�o preparadas. N�o dava para recuar. Ent�o, desde 2005, crian�a em idade escolar s� pode ser atendida pelo Cais se estiver na escola.
Ao seguir esse caminho, qual foi o resultado?
Come�amos como escola especial e mudamos tudo. As crian�as v�o para a escola e estamos juntos para ajud�-la. Viramos refer�ncia em inclus�o na escola. Em 2005, o Minist�rio da Educa��o nos procurou para escrever um livro sobre atendimento educacional especializado (AEE), feito no contraturno. O livro foi para todas as escolas p�blicas do Brasil e passamos a ser procurados para dar cursos no pa�s inteiro. J� fomos de norte a sul. O Acre, por exemplo, queria tornar todo o estado inclusivo e pediu o curso. J� avan�amos, mas as escolas precisam se transformar demais para se tornar inclusivas. Isso � um trabalho cont�nuo. A cada aluno que entra, voc� precisa repensar o modelo de inclus�o, tem que estar junto. Entre as escolas particulares, s�o poucas as que querem inclus�o, d� para contar nos dedos. Elas criam uma s�rie de empecilhos para que esse aluno n�o entre, a� os pais acabam buscando a escola p�blica, que n�o pode rejeitar. O modelo das escolas � muito segregador.
Qual � a sua opini�o sobre a Pol�tica Nacional de Educa��o Especial (PNEE), sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro no ano passado, que volta com as escolas especiais?
Somos totalmente contra. O benef�cio de estar em uma escola comum � imensur�vel. Estar fora s� vai agravar a defici�ncia, a perda � muito significativa. Ficar s� em um ambiente segregado n�o d� chance de essa crian�a participar do jogo social, de se haver com outro, com as dificuldades, com as diferentes culturas, com o amigo, com quem n�o � compreensivo. A vida � assim. Por outro lado, mantemos o atendimento educacional no Cais, porque ter um espa�o de conv�vio com os pares tamb�m � importante. Inclus�o n�o significa negar a conviv�ncia com o outro.
O trabalho com beb�s � mais recente. De onde veio a ideia?
As crian�as sempre chegavam muito tarde, a maioria a partir dos 6 anos, e com problemas mais cr�nicos. Sempre ped�amos uma pol�tica de atendimento precoce a todo novo secret�rio de Sa�de, mas nunca consegu�amos. At� que fomos � maternidade p�blica de Contagem para questionar: n�o nascem crian�as com defici�ncia?. Eles disseram que tinham muitas para encaminhar, mas n�o conheciam o nosso trabalho. Assim come�amos, em 2009, com um mutir�o das duas equipes. Tentamos verba com o munic�pio, que n�o tinha, e ent�o apresentamos o projeto para a Secretaria de Estado de Sa�de, falando sobre a import�ncia de a crian�a ser atendida logo que sai da maternidade. Isso virou um programa do estado, o Programa de Interven��o Precoce Avan�ado (Pipa), implantado em 2013. Os beb�s s�o acompanhados nos dois primeiros anos de vida por uma equipe com neurologia, psicologia, assist�ncia social, fonoaudiologia, fisioterapia, m�sica e conta��o de hist�rias. S�o beb�s de risco porque passaram pela UTI neonatal. Cerca de 40% s�o diagnosticados com alguma defici�ncia e recebem atendimento antes que o quadro se agrave. O tempo de tratamento � menor e essa crian�a tem outra vida. Quando come�amos, de 250 pessoas que atend�amos, 100 eram jovens. As crian�as entravam tarde e n�o conseguiam sair. Hoje � exatamente o contr�rio. De 400 pessoas, 200 s�o crian�as de at� 3 anos.
De que forma a pandemia impactou o trabalho de voc�s?
Passamos a fazer atendimento virtual. N�o recuamos, n�o podemos abandonar essas crian�as e fam�lias. Hoje, todos s�o atendidos virtualmente, exceto quem tem muita dificuldade de acessibilidade. At� tentamos um projeto com uma operadora para todo mundo ter celular e internet, mas n�o conseguimos. Agora, a contribui��o diminuiu muito, isso nos preocupa. Tivemos que reduzir a equipe, mas n�o queremos diminuir no atendimento. Isso seria cortar na carne. Quem quiser pode fazer doa��es pelo Imposto de Renda, pela conta da Cemig ou direto com o Cais. No nosso portal, vendemos produtos, de livros at� roupa usada. Precisamos tamb�m de volunt�rios para todo tipo de trabalho, desde manuten��o da casa, planejamento e divulga��o.
Como voc� se sente seguindo os passos da sua m�e?
N�o s� eu, o meu irm�o � diretor volunt�rio. N�s dois falamos que a nossa m�e nos deixou uma heran�a e queremos manter a institui��o de p�. � um legado.
O que enxerga para o Cais nos pr�ximos anos?
Enxergo o Cais s� crescendo. Queremos muito que a unidade dois, constru�da para educa��o profissional, tenha um espa�o bacana de atendimento e troca com a sociedade. Queremos colocar cada vez mais pessoas no mercado de trabalho e mudar a sociedade no que diz respeito � inclus�o. Queremos ampliar o atendimento aos beb�s, algo t�o necess�rio e que tem uma demanda muito grande.
O que falta para sermos uma sociedade inclusiva de fato?
Precisamos ter pol�ticas mais respeitadas, n�o d� para ir e voltar o tempo todo, e conscientizar a sociedade. As pessoas ainda n�o conseguem respeitar vaga de deficiente no shopping. Temos que continuar insistindo. A inclus�o significa uma mudan�a geracional, a� sim, vamos conseguir.