
Em 16 anos de pesquisas sobre a vida e a obra de Alceu Penna, uma pergunta sempre rondou Gabriela Penna: ser� que ele e Zuzu Angel n�o eram amigos?. Os dois nasceram em Curvelo, no interior de Minas Gerais, moraram no Rio de Janeiro na mesma �poca e trabalhavam com moda. Dif�cil acreditar que n�o teriam, pelo menos, se encontrado alguma vez, mas isso nunca ficou provado. At� que a fam�lia do artista descobriu uma carta reveladora.
Gabriela � sobrinha-neta de Alceu e, como pesquisadora de moda, design e comunica��o, se interessou em estudar tudo o que ele criou como artista gr�fico, designer e figurinista.

Nesse tempo, em toda palestra de que participava ela sempre era questionada se Alceu Penna e Zuzu Angel n�o tinham alguma rela��o, e partia o seu cora��o n�o conseguir responder � pergunta.
Imagina, ent�o, a
felicidade
ao ler a carta que Zuzu escreveu para Alceu, de Nova York, em 1971. “Quando voc� estuda uma pessoa tantos anos, tem muita informa��o que quer saber se foi verdade e n�o consegue confirmar. A carta joga luz nisso, � a prova da conex�o entre eles”, comenta.
A carta ficou guardada por d�cadas no apartamento onde Alceu passou a maior parte da sua vida, no Rio de Janeiro. Em 2007, quando Thereza, uma das irm�s dele, morreu, a fam�lia come�ou a catalogar o que havia l� dentro. Foram doados mais de dois mil desenhos do artista � Casa da Marquesa de Santos – Museu da Moda Brasileira. Mas o cart�o passou despercebido. “O apartamento ficou fechado por um tempo e tinha coisa guardada em todos os cantos”, conta a designer Mara Penna, sobrinha de Alceu.

As caixas com fotografias, cartas, livros e recortes de jornal foram parar na casa de Nat�rcio Pereira, casado com Maria Carmen, outra irm� de Alceu, e ficaram esquecidas por algum tempo. At� que, no ano passado, quando ele morreu, Mara trouxe o material para Curvelo. Um dia, mexendo nos pap�is, ela encontrou um
envelope
com o nome de Zuzu Angel e se surpreendeu com o que leu. “Sabe quando voc� fica sem a��o? Fiquei muito emocionada com a hist�ria.”
Coincid�ncia ou destino?
Alguns podem dizer que � coincid�ncia, outros destino, mas Mara achou a carta em junho, m�s do centen�rio de Zuzu Angel. Ela e o irm�o Ivan, gestor do Centro Cultural de Curvelo, haviam organizado uma
exposi��o
para homenagear a estilista, e Hildegard Angel, uma de suas filhas, chegaria em dois dias para uma visita. “Estamos mexendo no apartamento do tio Alceu desde que a tia Thereza faleceu, h� mais de 10 anos, e por que fomos encontrar a carta s� este ano e no m�s do anivers�rio da Zuzu?”, aponta.

A fam�lia de Alceu decidiu doar a carta para o Instituto Zuzu Angel, no Rio de Janeiro. Hildegard recebeu a carta no dia em que visitou a exposi��o em
Curvelo
. Mara foi quem fez a entrega e conta que a filha de Zuzu ficou muito emocionada. “Hildegard comentou que a m�e fazia roupas para elas, que eram desenhadas pelo tio Alceu, mas ela n�o sabe muitos detalhes, porque era menina”, revela a designer, dando mais uma prova da amizade entre Zuzu e Alceu.
Na carta, Zuzu chama Alceu de “querido amigo” e comenta que aquela seria “mais uma para a sua vasta cole��o”, sugerindo que eles teriam trocado muitas correspond�ncias enquanto viveram em pa�ses diferentes. Outro indicativo de que eram muito pr�ximos � que, no fim do texto, ela manda lembran�as a Thereza, uma das irm�s que morava com Alceu no Rio.
A carta foi escrita em 5 de outubro, poucos meses depois que o filho da estilista, Stuart Edgar, foi preso, torturado e assassinado pela
ditadura
militar. Zuzu estava nos Estados Unidos, onde buscava asilo pol�tico e um pouco de sossego para continuar a fazer moda. Mas suas palavras n�o deixam d�vida da dor que sentia pela trag�dia. “Ainda estou sob o terr�vel impacto do seu b�rbaro mart�rio e assassinato. Cada manh� levo o mesmo susto que levei no dia em que recebi a traumatizante not�cia”, ela escreveu.

Por coincid�ncia, ou “dolorosa surpresa”, como descreve, Zuzu acabou fugindo para uma pequena cidade (Edgartown) que tem o mesmo nome do filho (Stuart Edgar). Tocada por esse detalhe da hist�ria, ela at� grifou em vermelho o nome da cidade, que est� ilustrada na parte da frente do cart�o.
Trajet�rias parecidas
Zuzu e Alceu tiveram trajet�rias muito parecidas. Ambos nasceram em Curvelo, ele em 1915 e ela em 1921. Al�m disso, foram morar no Rio de Janeiro, mais ou menos na mesma �poca. Ele se mudou para a Cidade Maravilhosa em 1932, e ela, em 1939. L�, n�o faltaram oportunidades para os encontros, at� porque eles trabalhavam com moda. Um trecho da carta mostra que as roupas eram um interesse em comum. “Penso sempre em voc� quando vejo
vitrines
bonitas”, ela disse.
Os curvelanos combinavam na vontade de ousar e de se inspirar na cultura brasileira. Enquanto outros criadores se concentravam em refer�ncias internacionais, Zuzu Angel olhava para materiais e tem�ticas do seu pa�s. Tanto que usou chita e fez cole��o sobre o canga�o.

Alceu tamb�m defendia a busca de uma identidade brasileira. Nas colunas de moda, costumava criticar mulheres que usavam casaco de pele em pleno ver�o no Rio. “Acho que os dois t�m isso em comum. Quando pensamos que, na �poca, todo mundo achava legal copiar o que se usava na Europa, isso era ser chique, Zuzu e Alceu chegam e falam que ser brasileiro � maravilhoso.”
Em outro trecho, Zuzu faz um desabafo ao amigo. Ela deixa transparecer uma m�goa por n�o ter sido reconhecida no seu pa�s. “Enquanto as autoridades brasileiras pro�bem publica��es das fotos dos vestidos da minha cole��o, considerados, n�o entendi por que, subversivos, os confeccionistas aqui n�o perdem tempo e j� fizeram as suas c�pias.”

Ao reler essa fala, Gabriela lamenta que a carta comprove que a estilista fez mais sucesso nos Estados Unidos do que no Brasil. Para a pesquisadora, isso se explica, em parte, pelo momento de repress�o militar, em parte porque ela propunha uma moda diferente, mas tamb�m por uma quest�o de g�nero. “Todos os costureiros dos anos 1950 e 1960, e que trabalhavam em grandes marcas, eram homens, como Dener e Clodovil. Zuzu era uma das �nicas mulheres entre eles”, analisa.
� frente do tempo
Como artista gr�fico, Alceu desenhava moda, mas nunca quis ser estilista. Assim como Zuzu, tinha um lado subversivo. N�o por acaso, a coluna “As garotas do Alceu”, publicada na revista O Cruzeiro, foram t�o impactantes. As ilustra��es seguiam o padr�o de beleza e de moda da �poca, mas o comportamento das personagens era ousado, � frente do tempo. “As garotas apareciam na praia paquerando tr�s garotos ao mesmo tempo, bebiam no baile do Copacabana e ficavam de ressaca. Era como se ele estivesse dizendo para as leitoras que estava tudo bem fazer isso”, comenta Gabriela.

Se pudesse voltar no tempo, a pesquisadora gostaria de ver um editoral de moda assinado por Zuzu e Alceu. Gabriela enxerga que a cole��o da estilista seria bem brasileira. “Gosto muito da tem�tica do canga�o. Acho a estamparia maravilhosa, os shapes lindos e atual�ssimos. Ainda hoje daria para usar.”
J� Alceu, pelo que a sua sobrinha-neta imagina, ficaria respons�vel pela concep��o de styling. Segundo Gabriela, apesar de ser um artista gr�fico, ele tinha voca��o para dire��o de arte e mostrou isso nos trabalhos como figurinista. Juntos, Zuzu e Alceu assinaram o texto do editorial, que falaria sobre a quest�o da identidade brasileira. “Seria um sonho ver isso acontecer”, diz a pesquisadora, que se sente realizada com a prova de amizade entre dois nomes t�o marcantes da moda brasileira.
At� o fechamento desta edi��o, Hildegard Angel, filha de Zuzu e fundadora do Instituto Zuzu Angel, permanecia internada no Rio de Janeiro com COVID-19 e n�o pode ser entrevistada.
A carta

