
Lagoa Santa tinha apenas 60 casas quando o dinamarqu�s Peter Wilhelm Lund (1801–1880) chegou e se embrenhou pelas cavernas e grutas da regi�o c�rstica. Ele causou logo estranhamento entre a popula��o por colecionar ossos que encontrava enterrados nas lapas – uma pr�tica que, para ele, significava desvendar e revelar ao mundo cient�fico a pr�-hist�ria do pa�s que escolheu para viver e onde permaneceu por 45 anos, sem nunca voltar � terra natal. Natural de Copenhague e formado na universidade local em medicina e letras, cursos que lhe permitiam trabalhar na �rea de hist�ria natural (bot�nica e zoologia), o dr. Lund se tornou o “pai da paleontologia brasileira”, embora tenha ficado durante d�cadas pouco conhecido, apesar de muito citado. A partir de hoje, com a abertura do Museu Peter Lund, localizado ao lado da Gruta da Lapinha, em Lagoa Santa, na Regi�o Metropolitana de Belo Horizonte, brasileiros e estrangeiros v�o saber mais sobre esse verdadeiro “homem das cavernas”, respons�vel tamb�m por trabalhos em geologia, arqueologia e espeleologia.
“Dr. Lund era um homem de rupturas, daqueles que n�o temem desafios nem mudan�as”, diz a historiadora Ana Paula Almeida Marchesotti, autora do livro Peter Wilhelm Lund – O naturalista que revelou ao mundo a pr�-hist�ria brasileira (Editora E-Papers), resultado da disserta��o de mestrado defendida na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Segundo ela, o dinamarqu�s era de uma fam�lia de ricos comerciantes de l�s e tecidos e, em vez de abra�ar os neg�cios, preferiu trilhar os caminhos da academia. “Ele se formou em medicina, mas foi em dire��o � hist�ria natural, com foco em zoologia e bot�nica. Depois passou a trabalhar com paleontologia (f�sseis) e, finalmente, trocou uma carreira promissora na Europa, como cientista, para viver de forma modesta em Lagoa Santa.”
T�o logo se formou na universidade, Lund publicou dois trabalhos nas �reas de medicina e hist�ria natural, recebendo pr�mios. Aproveitando que o Brasil havia se tornado, desde 1808, com a vinda da fam�lia real, a meca dos viajantes europeus – nos tempos da col�nia, Portugal n�o permitia tais visitas – ele decidiu conhecer os tr�picos. Chegou ao Rio de Janeiro em 1825 e ficou na cidade e arredores durante quatro anos, atuando basicamente como bot�nico. Numa correspond�ncia, descreveu as festividades em honra ao nascimento de dom Pedro II (1825–1891). “Ele falava franc�s, ingl�s e, nesse per�odo, aprendeu a falar portugu�s. E ainda escreveu, numa carta a um amigo, um poema em latim”, observa Ana Paula, que mora em Lagoa Santa e come�ou a estudar a vida do dinamarqu�s ao ver que na cidade havia mais placas citando dr. Lund do que propriamente conhecimento sobre a obra dele. Nas pesquisas, ela verificou n�o haver quase nada sobre o naturalista respons�vel por encontrar vest�gios do homin�dio mais antigo da Am�rica Latina, o qual ficou conhecido como o Homem de Lagoa Santa. Era “parente” de Luzia, a primeira mulher da Am�rica, como entrou para a hist�ria.
De volta � Europa, o jovem Lund passou por v�rios pa�ses, entrou em contato com a comunidade cient�fica internacional, participou de congressos e doou cole��es de plantas coletadas no Brasil a museus. A vida seguiu nesse ritmo at� que, em 1932, ele ficou sabendo da morte da sua m�e. Retornou ent�o a Copenhague, ficou l� por pouco tempo e se despediu da fam�lia decidido a vir para o Brasil. Para tanto, contava com recursos do governo real dinamarqu�s para custear pesquisas, por�m a maior parte das despesas era paga com recursos familiares. Chegando aqui, visitou v�rios estados na companhia do bot�nico alem�o Ludwig Riedel e, no ano seguinte, em Curvelo, manteve o primeiro contato com as cavernas e f�sseis brasileiros. “Nessa cidade, Lund conheceu o dinamarqu�s Peter Claussen, interessado em ci�ncia e dono de uma fazenda na qual o visitante ficou hospedado. Depois de uma ida a Ouro Preto, onde Riedel, por problemas de sa�de, se despediu do amigo e retornou ao Rio de Janeiro, Lund voltou a Curvelo. No entanto, um tempo depois se desentendeu com Claussen e resolveu explorar cavernas em outras regi�es.”
Amizade eterna
Novamente nas trilhas, com ajuda de guias, Lund seguiu o Rio das Velhas, indo parar em Lagoa Santa. “Naqueles tempos, essas viagens eram muito dif�ceis. Havia perda de material, assaltos, ataque de animais, muita chuva, as doen�as tropicais, enfim, uma s�rie de problemas”. Mas Lund n�o se intimidava. Em Curvelo, havia encontrado o desenhista e ilustrador noruegu�s Andreas Brandt, um amigo do qual nunca mais se separou. “O paleont�logo n�o se casou nem teve filhos, mas adotou Nereu Cec�lio dos Santos, filho de um empregado dele, e lhe deixou heran�a. Na d�cada de 1920, Nereu escreveu o livro O naturalista, homenageando Lund, mas sem grandes novidades biogr�ficas”, diz a historiadora.
O car�ter generoso do cientista merece destaque. Em Lagoa Santa, onde morou numa casa doada posteriormente para ser escola, Lund fundou a Banda de M�sica Santa Cec�lia, comprou os instrumentos para a corpora��o e deu aulas. “Os recursos do governo da Dinamarca n�o eram suficientes, ent�o a fam�lia lhe mandava dinheiro. Lund vivia sem ostenta��o e era considerado exc�ntrico. Gostava de tocar piano e mantinha h�bitos alimentares rigorosos. “Ele adorava o clima brasileiro. Alguns dos seus irm�os morreram, ainda na inf�ncia, com problemas respirat�rios, ent�o ele achava que o calor o livrava desse mal. Morreu com 79 anos, uma idade bem avan�ada para as pessoas do s�culo 19”, diz a historiadora.
Em 1845, Lund, com 44 anos, resolveu parar com as escava��es, alegando motivos diversos e por n�o encontrar mais tantas novidades nas cavernas. Enquanto trabalhou, diz a historiadora, ele separou os f�sseis, embalou e listou cuidadosamente um a um, escreveu sobre eles, at� que os despachou para Copenhague. Longe do trabalho nas cavernas, passou a exercer outras atividades, como a medicina, cuidando da popula��o. “Nos anos em que viveu em Lagoa Santa, Lund se correspondia muito com outros cientistas, recebia os estrangeiros que chegavam �s Gerais, enfim, se tornou uma refer�ncia”, explica a pesquisadora. Para ela, o paleont�logo dinamarqu�s deu visibilidade a Minas, estado que � dono de patrim�nio espeleol�gico inestim�vel.
Linha do tempo
1801 –Em 14 de junho, Peter Wilhelm Lund nasce em Copenhague, capital da Dinamarca
1824 –Lund se forma na universidade, em medicina e letras, e se dedica � �rea de hist�ria natural (zoologia e bot�nica)
1825 –Lund faz sua primeira viagem ao Brasil e fica no Rio de Janeiro e arredores, at� 1929, atuando como bot�nico
1833 –Na segunda viagem ao Brasil, Lund visita v�rios estados na companhia do bot�nico alem�o Ludwig Riedel
1834 –Lund chega a Curvelo e tem o primeiro contato com as cavernas e f�sseis brasileiros
1835 – Lund fixa resid�ncia em Lagoa Santa, onde viveu 45 anos, e come�ar a fazer escava��es na regi�o
1845 –Ao terminar suas escava��es em Lagoa Santa, Lund envia cole��o de mais de 12 mil f�sseis � Dinamarca
1880 – Em 25 de maio, perto de completar 79 anos, Peter Lund morre em Lagoa Santa
saiba mais
Quem � Luzia
Entre 1974 e 1976, uma miss�o franco-brasileira, sob a chancela da Unesco, ficou na regi�o de Lagoa Santa e concentrou as escava��es principalmente na Lapa Vermelha de Pedro Leopoldo. Foi nessa caverna que a arque�loga Annette Laming Emperaire (1917–1977) encontrou Luzia, a primeira mulher da Am�rica, cujo cr�nio se encontra no Museu Nacional, no Rio. Em 1998, o f�ssil ganhou rosto e hist�ria. Ao fazer o levantamento dos f�sseis no museu, o antrop�logo Walter Neves, da USP, estudou os ossos e providenciou a data��o, que � de 11,4 mil anos.
�LTIMA MORADA
Protestante, dr. Lund sabia que n�o poderia ser enterrado numa igreja cat�lica, como era o costume da �poca. Ent�o, comprou uma �rea para, futuramente, ser sepultado debaixo de um pequizeiro, onde atualmente � o Bairro Brandt, na �rea central de Lagoa Santa. Em 1936, o paleont�logo teve os restos mortais trasladados para a Dinamarca. Na sepultura, ficaram apenas os ossos de integrantes da sua equipe, os quais est�o l� at� hoje. Segundo os estudiosos, houve mobiliza��o da comunidade de Lagoa Santa para evitar que os ossos fossem levados do Brasil, embora sem sucesso.
