Leia a resenha: Antologia 'Os sabiás da crônica' celebra legado de sexteto de escritores
E, por mais que soe como um absurdo ou um relato fantástico, em nome da USP e da Folha de S. Paulo, em 1984, trouxe Jorge Luis Borges ao Brasil. Tudo isso pode soar meio ‘faits divers’, um tanto de diletantismo e muita indisciplina intelectual. Mas, visto com alguma generosidade, também pode apontar para um diálogo permanente com a literatura.
Além disso, no melhor espírito modernista, procurei estabelecer uma conversa entre poetas e artistas plásticos: Mira Schendel e Orides, Amílcar de Castro e Sebastião Uchoa Leite, Nuno Ramos e Rubens Rodrigues Torres Filho, Tunga e João Moura Jr., Guto Lacaz e Duda Machado. Boa parte desses autores vingaram. E até mesmo Maria Lúcia Alvim, que, na época, não havia sido bem compreendida, foi resgatada com o premiado “Batendo pasto” (Relicário, 2020), graças ao olhar atento e generoso do Ricardo Domeneck e do Guilherme Gontijo Flores. A Claro Enigma foi minha primeira intervenção crítica. A coleção correspondia ao esforço de escrever um ensaio. Naquele período, editar um livro era caríssimo. E ainda tínhamos que lutar contra o preconceito de que “poesia não vende”.
A Claro Enigma não só vendeu bem como me abriu os olhos para uma produção ignorada que chegava pelo correio, vinda de diferentes cantos do país. Parte do material foi incorporado num grande evento, “Artes e ofícios da poesia”, realizado em maio de 1990. Poetas e editores do Brasil todo – Cléber Teixeira, Massao Ohno etc. – ocuparam o Masp durante uma semana intensa, frenética, fanática, manhã, tarde e noite. Poetas que não pude publicar na Claro Enigma foram contemplados no evento e, posteriormente, participaram de uma antologia homônima, na qual foram convidados a redigir uma espécie de “itinerário de Pasárgada”.
Nessas duas aventuras editoriais, contei sempre com a Livraria Duas Cidades e com uma amiga de todas as horas, Gisela Creni, que a partir dessa experiência acabou por escrever “Editores artesanais brasileiros” (Autêntica, 2017). Encerrado este primeiro ciclo, entrei na Universidade de São Paulo. E, paradoxalmente, foi na condição de professor que me senti forçado a retomar as antigas tarefas de editor. Para ficarmos num só exemplo, era impossível ministrar um curso sobre modernismo sem falar do Raul Bopp. No entanto, os livros do poeta não estavam disponíveis sequer na biblioteca da faculdade. Como oferecer aos alunos uma visão de conjunto da sua obra poética? Não restava outra alternativa: mãos à obra! Organizei a primeira edição das “Poesias completas de Raul Bopp” (José Olympio, 1998).
Anos depois, em 2013, preparei a segunda edição revista e ampliada. Nesse caso, contei com a cumplicidade da editora Maria Amélia Mello, à frente da José Olympio. E que também me convidou para organizar “Os sabiás da crônica”, pela Autêntica. Para encurtar, o segundo ciclo de minha intervenção crítica surgiu em função do exercício da docência. Comecei a observar que estava se abrindo um abismo entre a geração de grandes críticos formados pela USP e os alunos de graduação e pós-graduação que já estavam perdendo contato com um repertório de obras de referência. Então, propus à Editora 34 montar uma coleção de crítica voltada para o público universitário.
A receptividade da editora foi tão boa que montamos um conselho editorial – Antonio Candido, Alfredo Bosi, Gilda de Mello e Souza, Davi Arrigucci, Flora Sussekind, Roberto Schwarz – e começamos a republicar títulos que constavam do catálogo da extinta Livraria Duas Cidades. Foi uma experiência muito bem-sucedida, tanto do ponto de vista pessoal como do editorial. Pude desfrutar do convívio e da amizade intelectual com várias dessas figuras. O Antonio Candido abraçou o projeto. Não só batizou a coleção, “Espírito crítico”, como cedeu materiais inéditos para a reedição de “Os parceiros do Rio Bonito”. Tive ainda o privilégio de organizar a última coletânea de ensaios de Gilda Mello e Souza, “A ideia e o figurado!”, onde se encontra um ensaio notável sobre Fred Astaire.
Pouco a pouco, a coleção foi ampliando sua proposta inicial e passou a publicar obras clássicas de Georg Lukács, Erich Auerbach, Benjamin, Adorno. A coleção continua bastante ativa e atualmente é tocada pelo Milton Ohata. Em 2001, surgiu o convite para criar uma coleção em uma nova editora: Cosac Naify. A porta de entrada foi a “Prosa do mundo”, coleção composta por clássicos da literatura universal, coordenada por Davi Arrigucci, Samuel Titan e por mim.
Éramos identificados por edições luxuosas. Mas tínhamos coleções e livros baratos que conceitualmente pareciam um luxo, porém a liberdade total para ousar, correr riscos, repaginar o livro. Outro ponto interessante, havia um propósito de articular o catálogo infantil com os livros de arte, os livros de antropologia com os de fotografia, os de arquitetura. A ideia era ampliar os territórios do livro, fazer o leitor compreender a materialidade deste objeto: expor as lombadas costuradas e coladas, fazer o leitor sentir a gramatura e a textura do papel, jogar as páginas tradicionais de abertura (todo aquele esqueleto de ficha catalográfica, páginas de créditos fossem para o final e que o leitor penetrasse logo naquele cinema de imagens e palavras).
Nunca desejei ser um editor profissional ou proprietário de uma editora. A minha atuação dentro do meio sempre esteve vinculada a projetos. Por isso, gosto de falar em intervenções críticas. Editar é uma forma de meditar sobre a cena cultural. Por que toda esta longa exposição? A resposta pode ser resumida do seguinte modo: no prefácio que escrevi para “Os sabiás da crônica” procurei reconstruir uma sociabilidade literária que se formou em torno da Editora do Autor e da Editora Sabiá; talvez essa sinuosa linha de pesquisa revele ligações clandestinas e subterrâneas com a minha experiência pessoal. De alguma forma, me sinto herdeiro e continuador dessa militância a favor da crônica realizada pelo Rubem Braga e pelo Fernando Sabino.
Num âmbito mais amplo, temos críticos como o Murilo Marcondes de Moura, autor de “O mundo sitiado: A poesia brasileira e a Segunda Guerra Mundial” (Editora 34, 2016), livro vazado numa linguagem equilibrada e limpa, que ergue pontes entre o principal acontecimento histórico do século passado e os poetas do alto modernismo. Embora não se debrucem sobre a crônica, José Miguel Wisnik, Nuno Ramos, Lorenzo Mammì, Viviana Bosi, Eduardo Sterzi, entre outros, vêm publicando livros de ensaios notáveis. Dentro do terreno da crônica, tenho a convicção de que o crítico que realmente representou um ponto de virada foi John Gledson.
Ele vislumbrou um viés interpretativo para a ficção de Machado de Assis a partir da crônica do escritor. O modelo de edição proposto e consolidado por ele – estabelecimento confiável dos textos, ótimas notas explicativas, introduções que combinam contexto histórico e análise detalhada – tornou-se uma referência obrigatória.
Ao preparar "Os sabiás da crônica", constatei que existem sérios problemas com relação a fixação dos textos. Por vezes, as crônicas são simplesmente transcritas dos jornais e das revistas, sem nenhuma preparação ou checagem no sentido de verificar se aquela crônica, por exemplo, foi publicada posteriormente em livro. As crônicas de Rubem Braga, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos foram muito modificadas pelos próprios cronistas quando passam para o livro. Outra questão, quando um organizador opta por não reeditar os livros originais e opta por diluir o conjunto das crônicas em uma antologia temática, perde-se a organização original proposta pelo cronista: lendo os livros podemos entender por que ele escolheu determinada crônica para abrir o volume e outra para fechar? Do meu ângulo, essa escolha sugere uma preferência ou um gosto pessoal do cronista que sempre deve ser levado em conta.
O volume de crônicas de Antônio Maria, organizado pelo Guilherme Tauil, é resultado de um mestrado defendido sob sua orientação. Poderia falar um pouco deste trabalho?
Quando me procurou para ingressar no mestrado, o seu objeto de estudo já estava definido: Antônio Maria. Como eu estava mergulhado na pesquisa de "Os sabiás da crônica", pude ajudá-lo criando um contraponto com a trajetória do Antonio Maria. Passamos tardes inteiras conversando sobre a crônica. Quando ocorre essa troca de ideias - no plano da pesquisa, da bibliografia e da própria fatura dos textos – temos a percepção irrefutável de que este é o núcleo central e decisivo da cultura universitária. Dispensa qualquer métrica ou avaliação imposta por Capes, CNPQ ou Fapesp. Desde o título, "Vento vadio", é o resultado de uma ampla pesquisa que resgatou inúmeras crônicas que permaneciam inéditas em livro e eram desconhecidas até mesmo dos leitores mais fiéis de Antônio Maria. O prefácio traz uma interpretação nova e original da obra do cronista com grande poder de síntese. O único reparo: a edição ganharia em poder de exposição se tivesse optado por uma estrutura composta por blocos cronológicos. Mas, posso estar redondamente enganado e quem sabe revelando preconceitos de uma sensibilidade crítica formada no século passado. A verdade é que a publicação de "Vento vadio" deve ser saudada como uma contribuição rara, notável e bem-vinda.
Dito isso, percebo que na universidade há um interesse crescente pela crônica. Tenho participado de muitas bancas e, nota que entre os autores mais estudados, figuram Lima Barreto, Cecília Meireles e Rubem Braga. Este último teve suas "Crônicas de guerra" revisitadas numa dissertação de mestrado exemplar escrita por Rafael Ireno. Trata-se de outro leitor fanático e praticante do gênero. Neste momento, está em Paris, elaborando um roteiro das afinidades entre Rubem Braga e Jacques Prévert.
O que dizer do abismo que separa as notícias publicadas na imprensa escrita da fragilidade da informação que circula pelo mundo online? E o que me parece alarmante é como os novos meios estão alterando completamente a vivência cotidiana do tempo, uniformizando os dias da semana. Os ritmos de trabalho invadiram todos os recessos do descanso. A precarização dos contratos de trabalho desconsidera dia e noite, semana e final de semana, hora extra, adicional noturno. É impressionante como o “domingo” está perdendo seus contornos. Na crônica praticada pelos "Sabiás", o domingo traduzia dimensões coletivas concretas e abria um leque íntimo de sentimentos líricos. Não é que levantamos tarde aos domingos. Era a crônica domingueira que nos despertava para o mundo. Assim como Eric Hobsbawm descreveu desde a "Era dos Impérios à Era dos Extremos", um cronista teria matéria para "A era dos domingos". Por que hoje é sábado?
Quando ambos me convidaram para participar da belíssima coleção "Lição de Coisas", o poema começou a se compor na minha cabeça. "Borra" tem uma dimensão política que passa pela tipografia. Recolher letras mortas e compor palavras vivas. A tragédia precisava ser traduzida. Pensei que a sensação de impotência diante da catástrofe podia ser transformada na potência de um berro coletivo mixado num cartaz. O Flávio reciclou com recursos construtivos o alto poder de destruição. O poema tensiona dois movimentos estruturais: luta e luto, berro e borra. Barrar o discurso da empresa. Não deixar que borrassem Brumadinho. Todo poema deve provocar ruído.
Também não posso deixar de comentar a literatura “dita infantil”: Angela-Lago, Wander Piroli e Nelson Cruz. Três autores simplesmente geniais. Tenho orgulho de ter sido editor de Angela Lago e Nelson Cruz. E tenho inveja do poeta Fabrício Marques que marcou um golaço ao escrever a biografia "Wander Piroli, Uma manada de búfalos dentro do peito" (Conceito, 2018).
O primeiro título de literatura infantil que publiquei na Cosac Naify foi "Conto de escola" (2002), de Machado de Assis, ilustrado por Nelson Cruz. Com este título inaugurei uma coleção, Dedinho de Prosa, coordenada em parceria com Odilon Moraes. No finalzinho de 2021, diante do atual quadro político, nacional e internacional, não deixa de ser uma alegria que a crônica esteja viva e vacinada, disponibilizando para os leitores, três doses (digo títulos!): “Vento vadio”, “Os sabiás da crônica” e “A fina flor de Stanislaw Ponte Preta”. Uma ótima vacina para combatermos qualquer risco de variantes ou novas cepas do mau humor.