
Amadeu � um senhor simp�tico e apaixonado pela netinha de 5 anos, a quem ele dedica boa parte do dia. Pelo menos � assim que a zeladora do condom�nio Dolce Vita o v�. Ela n�o faz ideia do passado de Amadeu e questiona a raz�o de um rep�rter de um jornal mineiro procurar por ele antes das 9h de uma ter�a-feira. Ao ser informada laconicamente que o morador do 17° andar � um importante personagem da hist�ria recente do Brasil, a zeladora faz cara de espanto e quer saber a raz�o.
Do terceiro sargento no Ex�rcito do Rio Grande do Sul, que apoiou, junto de seus pares, o ent�o presidente Jo�o Goulart, em 1961, quando os militares tentaram derrubar o presidente ga�cho, at� o senhor dos dias atuais, um bom peda�o da hist�ria do Brasil foi visto pelos olhos que come�am a ficar com a vis�o opaca com a chegada da catarata. Ao lado dos que lutaram pela perman�ncia de Jango, em 1961, Amadeu conheceu Brizola, governador do Rio Grande do Sul � �poca e comandante da Campanha da Legalidade, que garantiu o presidente ga�cho no cargo, com a condi��o de que Tancredo Neves fosse nomeado primeiro ministro. Tr�s anos depois, em 1964, os militares conseguiram derrubar Jango definitivamente.
Brizola se exilou no Uruguai e os sargentos come�aram articular para derrubar o governo militar. Juntos formaram o Movimento Nacionalista Revolucion�rio (MNR). O plano inicial era fazer um levante no Rio Grande do Sul, nos moldes do que ocorreu na Campanha da Legalidade, e, assim, retirar o poder das m�os dos ditadores.
Na noite de 24 de dezembro de 1964 Amadeu e outros dois companheiros do Ex�rcito foram encontrar Brizola em Montevid�u. "Ele (Brizola) disse que toparia ajudar a guerrilha rural, mas a condi��o era tentar antes o levante no Sul e tomar o Rio Grande", recorda Amadeu. O plano dos sargentos era partir logo para a guerrilha rural, seguindo a teoria chamada de foquismo, cujo maior expoente foi Che Guevara, um dos respons�veis pelo sucesso pr�tico da tese, quando, junto de Fidel Castro e outros companheiros, derrubou a ditadura de Fulg�ncio Batista em Cuba, em 1959.
O local escolhido pelos sargentos para ser a vers�o brasileira da Sierra Maestra foi a regi�o do Parque Nacional do Capara�, onde fica o Pico da Bandeira, que � �poca ainda era considerado o mais alto do Brasil. Antes de partirem para a divisa de Minas com o Esp�rito Santo, os sargentos, com Amadeu Felipe � frente, tentaram fazer um levante no Rio Grande do Sul, conforme acordado com Brizola.
O velho Caudilho, como Brizola ficou conhecido depois, passou os contatos que tinha na divis�o ga�cha do Ex�rcito e na Brigada Militar (como � chamada a Pol�cia Militar de l�) para os sargentos. Amadeu lembra que, j� clandestino, conseguiu entrar na cadeia em que estava preso o coronel da Brigada, �tila Nunes, para conspirar. "Conversei durante uma hora com ele e com outros militares", lembra. De acordo com Amadeu, a Brigada estava de acordo com os planos de Brizola, que al�m dos sargentos tinha apoio tamb�m dos funcion�rios dos Carris (como eram chamados os bondes) e da empresa de energia el�trica. "Pod�amos parar tudo em Porto Alegre", destaca Amadeu.

Negociador
O acordo feito com Brizola era primeiro tentar o levante no Rio Grande do Sul e depois partir para a guerrilha rural. Com o fracasso da insurrei��o em terras ga�chas, Brizola apoiou a ideia do foco guerrilheiro. Amadeu e os outros sargentos partiram para o Rio de Janeiro. Mais do que clandestinos depois do fracasso do levante, eles estavam com a cabe�a a pr�mio e eram ca�ados pela repress�o, como destaca Amadeu. "Recebi recados para sair do pa�s, pois eles n�o poupariam minha vida", recorda.
Na capital fluminense, Amadeu conversou com Anivanir de Souza Leite, um para-quedista que tinha fam�lia em Manhumirim, na Zona da Mata mineira. Os sargentos tamb�m fizeram contatos com os militantes da Organiza��o Revolucion�ria Marxista Pol�tica Oper�ria (Polop), que j� haviam sondado um poss�vel foco de resist�ncia na regi�o do Capara�.
Antes de contar os detalhes da guerrilha, que estava prestes a come�ar na narrativa, Amadeu faz uma pausa na entrevista para ir com a filha e a neta almo�ar em um restaurante self-service do bairro. A netinha v� a medalha Dinarco Reis concedida pelo Partido Comunista Brasileiro ao tio de Amadeu, hom�nimo dele, que havia sido mostrada ao rep�rter, e pede para levar a condecora��o para a escola. O ex-guerrilheiro consente. No restaurante, Amadeu n�o almo�a e explica que � um h�bito que adquiriu nos nove meses passados embrenhado nas matas do Capara�. Toma um caf� da manh� refor�ado e s� come novamente � noite. Faz assim h� quase 50 anos.
Com muita paci�ncia d� comida na boca da neta, compra um picol� para ela e segue dirigindo para deixar primeiro a filha em uma escola p�blica, onde ela leciona, e depois a neta na escola religiosa comandada por freiras. Amadeu leva mais de 15 minutos dentro do col�gio e na volta explica ao rep�rter, que aguardava no carro, o motivo da demora: "Tive que negociar para pegar a medalha. A Duda (neta) estava mostrando para as amigas e a freira fez um olhar de quem n�o estava gostando muito. Medalha de comunista em col�gio de freira n�o fica bem".
Amadeu trocou a medalha com Duda por uma garrafa pet. A atividade do dia da escola pedia que cada crian�a levasse uma dessas garrafas vazias. Como nem na casa de Amadeu e nem na casa da filha dele bebe-se refrigerante, Duda foi de m�os vazias. Amadeu conseguiu uma na �ltima hora e convenceu a neta a trocar a medalha pela garrafa vazia.
O perfil negociador, ali�s, � uma das raz�es que levam alguns comandados de Amadeu na guerrilha do Capara� a acus�-lo de ter acordado a rendi��o com os militares. As vers�es dos outros guerrilheiros podem ser lidas no livro Capara� (Editora Boitempo, 2007), escrito por Jos� Caldas da Costa. Fato que Amadeu nega veementemente. "Quando eu vi que n�o eram camponeses e eram policiais s� eu estava com um fuzil na m�o. Teria a chance de matar um e depois morrer. N�o ia ser s� suic�dio. Ia ser uma chacina. Eu sempre tive algo muito bom, que � n�o perder a calma. Se n�o fosse assim n�o estar�amos conversando aqui hoje", afirma Amadeu sobre o momento em que foram presos, quando ele era o respons�vel pela guarda do acampamento.
A guerrilha
Entre o in�cio da guerrilha e a pris�o dos oito que restaram no Capara�, no dia 1º de abril de 1967, transcorreram nove meses. Al�m dos sargentos, havia tamb�m por determina��o do comando de Montevid�u, liderado por Brizola, marinheiros que fizeram treinamento de guerrilha em Cuba. Amadeu lembra que naquela �poca havia um plano articulado por Cuba e comandado por Brizola no Brasil de serem feitos v�rios focos guerrilheiros.
Al�m do Capara�, comandado por ele, haveria outro no Mato Grosso e um terceiro na divisa entre Maranh�o, Par� e Goi�s (hoje Tocantins), que anos depois seria palco da Guerrilha do Araguaia, cujos guerrilheiros n�o tiveram o mesmo destino e foram mortos barbaramente pelo Ex�rcito. O plano maior, segundo Amadeu, era de uma integra��o com o movimento guerrilheiro de Che Guevara na Bol�via, massacrado seis meses depois da queda do Capara�.

Quando chegaram ao local os guerrilheiros se instalaram em um s�tio arrendado da fam�lia do para-quedista e aos poucos foram reconhecendo a regi�o do parque, at� passarem a sobreviver somente na mata. O objetivo era, sempre seguindo os preceitos de Che e Mao, conhecer a regi�o como a palma da m�o, para, quando fosse necess�rio, atrair os militares que estavam no poder e derrot�-los no local. A frase de Guevara sobre criar "um, dois, tr�s, v�rios Vietn�s" era uma esp�cie de mantra, uma refer�ncia � derrota dos Estados Unidos na Guerra do Vietn�. Mas, as dificuldades eram grandes. O abastecimento de comida n�o era ideal e por muitas vezes chegaram a passar fome. Amadeu lembra que em uma ocasi�o comeram ovos chocos, com o pintinho j� come�ando a se formar.
Amadeu era o comandante, mas dependia do aval de Brizola para o momento de atacar. O contato era feito pelo n�cleo urbano da guerrilha, que ficava no Rio de Janeiro e cuidava do abastecimento de armas e comida, al�m de fazer o elo entre os guerrilheiros e o pol�tico ga�cho. "O Brizola deu autonomia em termos. Ele topou a montagem da guerrilha, mas queria discutir o momento de uma atitude armada ou tomar uma cidade", recorda Amadeu.
O desejo dos guerrilheiros, segundo Amadeu, era tomar a cidade de Presidente Soares, hoje chamada de Alto Jequitib�, com apenas 8 mil habitantes, que � �poca n�o passava de 6 mil. "Tomar a delegacia de pol�cia, pegar o armamento, tomar o correio, o juizado, o banco, pegar os recursos e fazer um comunicado", detalha. Por�m, o aval n�o foi dado por Brizola. "Quando o Brizola negou a tomada de Presidente Soares, o pessoal perdeu o �nimo", acredita Amadeu.
Para o comandante, a hist�ria poderia ter sido outra se eles tivessem tomado Presidente Soares. "Criaria um princ�pio e mostraria que � poss�vel. Ter�amos algumas horas para ficar como donos da cidade e depois far�amos o recuo. Isso era pensado, mas o Brizola nunca concordou com a possibilidade", lamenta. Dos 17 guerrilheiros que estiveram no Capara� o grupo estava reduzido a oito quando a Pol�cia Militar de Minas Gerais (PM) os prendeu, sem resist�ncia e muito fracos, pois alguns chegaram a contrair peste bub�nica.
Todos foram presos e tamb�m outros militantes que vieram do Rio de Janeiro ap�s a queda, em busca de not�cias acabaram capturados. Amadeu conta que o que salvou a vida deles, pois acredita que havia ordens do ex�rcito para execut�-los, foi uma fotografia feita por Geraldo Viola e publicada na Revista O Cruzeiro. A foto foi feita antes do embarque para Juiz de Fora, onde ficaram presos na penitenci�ria de Linhares. "O coronel da PM Jacinto Franco do Amaral ligou para a imprensa e permitiu que f�ssemos fotografados. Ele salvou a vida da gente, pois essa foto foi para o mundo todo", acredita.
Comunista de ber�o
Enquanto dirige pelas ruas de Londrina, cidade com alto �ndice de Desenvolvimento Humano (IDH), Amadeu conta um pouco da hist�ria do munic�pio de 540 mil habitantes que adotou para viver depois que saiu da pris�o, em abril de 1971, e discorre sobre as desigualdades sociais. Nascido em Blumenau, em Santa Catarina, Amadeu � bisneto de Herc�lio Pedro da Luz, que governou Santa Catarina por tr�s oportunidades entre 1894 e 1924. Foi criado pelo padastro, oficial do ex�rcito e filiado ao Partido Comunista Brasileiro. "Eu sou comunista e sou comunista desde menino. Tive o privil�gio de ser educado por um oficial de Ex�rcito que casou com minha m�e, pois meu pai morreu quando eu tinha quatro anos. Ele era do partido e me educou lendo Jorge Amado e toda a literatura comunista e me deu exemplos muitos verdadeiros", orgulha-se Amadeu.

Ap�s sair da pris�o, Amadeu se tornou s�cio de um cunhado em uma empresa de refrigera��o e com isso criou a fam�lia. Seus tr�s filhos, outros dois filhos de uma irm� que morreu jovem e mais dois enteados. "Quando eu sai da pris�o onde eu fosse eu estava queimado. Al�m disso, eu tinha duas crian�as que at� ent�o eu n�o conhecia", destaca. Al�m da fam�lia, ele disse que se convenceu de que a possibilidade de "virar o jogo" por meios armados seria muito dif�cil.
Passou a militar clandestinamente no PCB na d�cada de 1970 e em 1985 foi o candidato a deputado federal mais votado do partido no Paran�, mas n�o foi eleito. No in�cio dos anos 2000 tentou ser prefeito de Londrina e na �ltima elei��o se candidatou a governador do Paran�, sempre pelo PCB. "Foi mais uma afirma��o partid�ria e individual. N�o havia nem tempo de campanha e nem dinheiro", lamenta Amadeu.
Milico
Na d�cada de 1990 Amadeu foi anistiado e reintegrado �s For�as Armadas. Promovido a capit�o, ele recebe o soldo de major. O capit�o, entretanto, n�o ameniza as cr�ticas ao militarismo. � a favor, inclusive, da desmilitariza��o das pol�cias militares. "O policial fardado se sente como um milico e o milico n�o � bom conselheiro para segurar movimento. O milico � para fazer guerra", afirma.
Sobre os movimentos que tomaram as ruas no ano passado e prometem agitar novamente durante a Copa do Mundo, Amadeu atribui os excessos � a��o da pol�cia. "A viol�ncia � puxada pela pol�cia. A viol�ncia policial � que gera a viol�ncia dos movimentos. Quando voc� se acostuma a fazer viol�ncia para se defender voc� tamb�m faz a outra viol�ncia agressiva, que n�o tem sentido", entende Amadeu.
Ele n�o consegue enxergar nenhum legado positivo no que os militares deixaram para o pa�s durante mais de duas d�cadas de governo. "Foi uma subordina��o ao capital internacional terr�vel", lamenta. O ex-guerrilheiro acredita que Jango estava prestes a promover avan�os imensos para o pa�s, com as reformas de base, e lembra de um epis�dio, nos dias que antecederam o golpe, quando ele, acompanhado de outros 40 sargentos, foi visitar Juscelino Kubitschek.
"Presidente, vai haver um golpe. O senhor � o maior interessado, pois pode ser eleito na pr�xima elei��o", lembra de ter dito a JK. O ex-presidente telefonou ent�o para o Amaral Peixoto (militar, um dos l�deres do PSD e que havia sido ministro de JK), que era genro do Get�lio Vargas, e escutou do conselheiro que aquilo era apenas "papo de sargento", recorda.
Ao rever o passado, ap�s quase um dia de conversa, Amadeu demonstra muito orgulho de sua hist�ria. N�o guarda rancor e, ao olhar para a pr�pria imagem impressa em um livro, quando foi preso no Capara�, � imposs�vel n�o remeter � figura de Che Guevara, �cone m�ximo dos guerrilheiros e que seis meses depois seria assassinado na Bol�via, quando tentava fazer uma guerrilha naquele pa�s. Pelo cabelo grande, a barba espessa e principalmente pela lend�ria frase do revolucion�rio argentino, que pode ser aplicada � trajet�ria de Amadeu: "Hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jam�s".
O ex-guerrilheiro faz quest�o de levar o rep�rter at� o aeroporto, mas volta para casa sem demora, pois precisa ficar de prontid�o para sua pr�xima miss�o. A qualquer momento pode ser acionado para buscar a neta na escola.