COVID-19: TCU afasta auditor que preparou estudo falso citado por Bolsonaro
Tribunal abre processo contra Alexandre Marques por ter elaborado um relatório inverídico sobre mortes por COVID. Corregedor diz que fatos são graves
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Vicente Nunes - Correio Braziliense
09/06/2021 07:06 - Atualizado em 09/06/2021 07:19
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A presidente do Tribunal de Contas da União (TCU), ministra Ana Arraes, autorizou a abertura de processo administrativo disciplinar contra o auditor Alexandre Figueiredo Costa Silva Marques, autor de um “estudo paralelo” no qual sustenta que metade das mortes creditadas à covid-19 não ocorreu por causa da doença.
Marques já foi destituído de suas funções de supervisor no Núcleo de Supervisão de Auditoria do tribunal. No lugar dele vai assumir Fábio Mafra.
O corregedor da Corte, ministro Bruno Dantas, afirmou que “os fatos até aqui apurados pela Corregedoria são graves e exigirão aprofundamento para avaliar a sua real dimensão”. “Para isso, é necessária uma decisão da presidente do TCU, ministra Ana Arraes. Ainda é cedo para extrair conclusões, mas, se ficar comprovado que o auditor utilizou o cargo para induzir uma linha de fiscalização orientada por convicções políticas, isso será punido exemplarmente.”
O substituto de Marques, Fábio Mafra, é tido pelos ministros como um dos melhores auditores/supervisores do tribunal. Ficou definido que ele terá todo o suporte para que o trabalho siga com segurança.
Horas depois, porém, a própria Corte contestou a declaração. “O TCU esclarece que não há informações em relatórios do Tribunal que apontem que ‘em torno de 50% dos óbitos por COVID no ano passado não foram por COVID’, conforme afirmação do presidente Jair Bolsonaro divulgada hoje (segunda-feira)”, disse, em nota.
Marques está lotado no setor do TCU que lida com inteligência e combate à corrupção. Quando começou a pandemia do novo coronavírus, ele pediu para acompanhar as compras com dinheiro público de equipamentos para o enfrentamento à doença.
A partir dali, o auditor começou a elaborar o “estudo paralelo”. Quando apresentou os resultados de sua tese a colegas de trabalho, foi veementemente repreendido, pois ficou claro que queria desqualificar os governadores e favorecer o discurso de Bolsonaro. Nenhum outro auditor do TCU endossou o “levantamento”, por considerá-lo uma farsa.
Segundo integrantes do tribunal, Marques queria incluir no 6º Relatório de Monitoramento sua tese falsa, mas foi barrado por colegas de trabalho.
Sem espaço no tribunal para levar adiante o relatório, Marques o liberou para filhos de Bolsonaro, dos quais é amigo. Com o levantamento falso em mão, o presidente o usou para atacar seus críticos e endossar a sua tese de que governadores superdimensionaram o total de mortes pela COVID-19 com o objetivo de receber mais dinheiro do governo federal.
Quem acompanha as redes sociais de Marques pode verificar que ele costuma compartilhar fake news, como os benefícios do uso de ivermectina no combate à COVID-19. Ele também incita ataques a governadores, justamente a quem pretendia prejudicar com o “estudo paralelo”. Procurado pelo Correio, o servidor disse que não se manifestaria.
Barrado
O auditor Alexandre Figueiredo Costa Silva Marques é amigo, também, do presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Gustavo Montezano. Em 2019, o servidor tentou assumir uma diretoria no banco na área de compliance, mas teve os planos barrados pelo então presidente do TCU, José Mucio Monteiro, que não aceitou cedê-lo.
CPI da Covid avalia convocá-lo
O auditor Alexandre Figueiredo Costa Silva Marques, do Tribunal de Contas da União (TCU), entrou na mira da CPI da COVID por ter elaborado um “estudo paralelo” sustentando que metade das mortes atribuídas à COVID-19 ocorreu por outros motivos.
O senador da oposição Humberto Costa (PT-PE) protocolou, ontem, um requerimento para convocar o servidora depor na CPI da pandemia. Para embasar o pedido, o parlamentar citou a reportagem do jornalista Vicente Nunes, do Correio Braziliense, que revelou a autoria do estudo paralelo. “Entendo importante o depoimento do convocado”, enfatizou. Em seguida, o presidente da CPI, Omar Aziz (PSD-AM), pediu para que o colega acrescentasse um requerimento de quebra de sigilo. “Faz logo um pedido completo para a gente votar amanhã (hoje)”, afirmou.
O vice-presidente da CPI da COVID, Randolfe Rodrigues (Rede-AP), ressaltou que mais importante do que uma convocação do servidor é a quebra de sigilo de dados. “É importante apurarmos por que esse auditor fez isso e quais os interesses. Isso tem relação direta com esta comissão parlamentar”, argumentou. Segundo o senador, a atitude do auditor é criminosa e serviu como suporte para que o presidente Jair Bolsonaro espalhasse “uma notícia mentirosa sobre o tribunal que, em seguida, foi desmentida pelo próprio órgão”.
Durante a sessão da comissão que tomou o depoimento do ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, o senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) definiu como fake news a citação do estudo paralelo. “O presidente (Bolsonaro) tinha plena consciência de que estava falando uma mentira, e isso é inaceitável, porque, se o líder da nação não se engaja, o senhor (Queiroga) pode morrer trabalhando, porque o brasileiro não vai usar máscara, não vai respeitar isolamento, buscar segunda dose da vacina, porque esse líder busca desinformar a cada segundo”, criticou.
Retratação
Nesta terça-feira (8/6), Bolsonaro admitiu que falhou em creditar o estudo paralelo ao TCU. “Vou só explicar uma coisa aqui, a questão do equívoco, eu e o TCU, de ontem. O TCU está certo, eu errei quando falei tabela”, disse, em conversa com apoiadores.
O mandatário tomou para si a responsabilidade sobre o documento que deixou de ser um relatório e se transformou em “tabela”, mas insistiu que há superdimensionamento do número de mortes por COVID-19. “A tabela quem fez foi eu, não foi o TCU. O TCU não errou em falar que a tabela não é deles. A imprensa usa para falar que fui desmentido, o tempo todo é assim”, disparou.
O que é uma CPI?
As comissões parlamentares de inquérito (CPIs) são instrumentos usados por integrantes do Poder Legislativo (vereadores, deputados estaduais, deputados federais e senadores) para investigar fato determinado de grande relevância ligado à vida econômica, social ou legal do país, de um estado ou de um município. Embora tenham poderes de Justiça e uma série de prerrogativas, comitês do tipo não podem estabelecer condenações a pessoas.
Para ser instalado no Senado Federal, uma CPI precisa do aval de, ao menos, 27 senadores; um terço dos 81 parlamentares. Na Câmara dos Deputados, também é preciso aval de ao menos uma terceira parte dos componentes (171 deputados).
Há a possibilidade de criar comissões parlamentares mistas de inquérito (CPMIs), compostas por senadores e deputados. Nesses casos, é preciso obter assinaturas de um terço dos integrantes das duas casas legislativas que compõem o Congresso Nacional.
Após a coleta de assinaturas, o pedido de CPI é apresentado ao presidente da respectiva casa Legislativa. O grupo é oficialmente criado após a leitura em sessão plenária do requerimento que justifica a abertura de inquérito. Os integrantes da comissão são definidos levando em consideração a proporcionalidade partidária — as legendas ou blocos parlamentares com mais representantes arrebatam mais assentos. As lideranças de cada agremiação são responsáveis por indicar os componentes.
Na primeira reunião do colegiado, os componentes elegem presidente e vice. Cabe ao presidente a tarefa de escolher o relator da CPI. O ocupante do posto é responsável por conduzir as investigações e apresentar o cronograma de trabalho. Ele precisa escrever o relatório final do inquérito, contendo as conclusões obtidas ao longo dos trabalhos.
Em determinados casos, o texto pode ter recomendações para evitar que as ilicitudes apuradas não voltem a ocorrer, como projetos de lei. O documento deve ser encaminhado a órgãos como o Ministério Público e a Advocacia-Geral da União (AGE), na esfera federal.
Conforme as investigações avançam, o relator começa a aprimorar a linha de investigação a ser seguida. No Congresso, sub-relatores podem ser designados para agilizar o processo.
As CPIs precisam terminar em prazo pré-fixado, embora possam ser prorrogadas por mais um período, se houver aval de parte dos parlamentares
O que a CPI pode fazer?
chamar testemunhas para oitivas, com o compromisso de dizer a verdade
convocar suspeitos para prestar depoimentos (há direito ao silêncio)
executar prisões em caso de flagrante
solicitar documentos e informações a órgãos ligados à administração pública
convocar autoridades, como ministros de Estado — ou secretários, no caso de CPIs estaduais — para depor
ir a qualquer ponto do país — ou do estado, no caso de CPIs criadas por assembleias legislativas — para audiências e diligências
quebrar sigilos fiscais, bancários e de dados se houver fundamentação
solicitar a colaboração de servidores de outros poderes
elaborar relatório final contendo conclusões obtidas pela investigação e recomendações para evitar novas ocorrências como a apurada
pedir buscas e apreensões (exceto a domicílios)
solicitar o indiciamento de envolvidos nos casos apurados
O que a CPI não pode fazer?
Embora tenham poderes de Justiça, as CPIs não podem:
julgar ou punir investigados
autorizar grampos telefônicos
solicitar prisões preventivas ou outras medidas cautelares
declarar a indisponibilidade de bens
autorizar buscas e apreensões em domicílios
impedir que advogados de depoentes compareçam às oitivas e acessem
documentos relativos à CPI
determinar a apreensão de passaportes
A história das CPIs no Brasil
A primeira Constituição Federal a prever a possibilidade de CPI foi editada em 1934, mas dava tal prerrogativa apenas à Câmara dos Deputados. Treze anos depois, o Senado também passou a poder instaurar investigações. Em 1967, as CPMIs passaram a ser previstas.
Segundo a Câmara dos Deputados, a primeira CPI instalada pelo Legislativo federal brasileiro começou a funcionar em 1935, para investigar as condições de vida dos trabalhadores do campo e das cidades. No Senado, comitê similar foi criado em 1952, quando a preocupação era a situação da indústria de comércio e cimento.
As CPIs ganharam estofo e passaram a ser recorrentes a partir de 1988, quando nova Constituição foi redigida. O texto máximo da nação passou a atribuir poderes de Justiça a grupos investigativos formados por parlamentares.
CPIs famosas no Brasil
1975: CPI do Mobral (Senado) - investigar a atuação do sistema de alfabetização adotado pelo governo militar
1992: CPMI do Esquema PC Farias - culminou no impeachment de Fernando Collor
1993: CPI dos Anões do Orçamento (Câmara) - apurou desvios do Orçamento da União
2000: CPIs do Futebol - (Senado e Câmara, separadamente) - relações entre CBF, clubes e patrocinadores
2001: CPI do Preço do Leite (Assembleia de MG e outros Legislativos estaduais, separadamente) - apurar os valores cobrados pelo produto e as diretrizes para a formulação dos valores
2005: CPMI dos Correios - investigar denúncias de corrupção na empresa estatal
2005: CPMI do Mensalão - apurar possíveis vantagens recebidas por parlamentares para votar a favor de projetos do governo
2006: CPI dos Bingos (Câmara) - apurar o uso de casas de jogo do bicho para crimes como lavagem de dinheiro
2006: CPI dos Sanguessugas (Câmara) - apurou possível desvio de verbas destinadas à Saúde
2015: CPI da Petrobras (Senado) - apurar possível corrupção na estatal de petróleo
2015: Nova CPI do Futebol (Senado) - Investigar a CBF e o comitê organizador da Copa do Mundo de 2014
2019: CPMI das Fake News - disseminação de notícias falsas na disputa eleitoral de 2018
2019: CPI de Brumadinho (Assembleia de MG) - apurar as responsabilidades pelo rompimento da barragem do Córrego do Feijão