Luana ainda espera pelo retorno do marido Z� Pedreiro
Em 16 de junho, Jos� Pereira do Nascimento, o "Z� Pedreiro", acordou agitado. O enteado contou que ele dava voltas na casa, sentava, dava voltas de novo.
Silvana Ribeiro Cabrini, sua mulher, percebeu a inquieta��o do marido quando chegou do servi�o.
H� oito anos, ela trabalha das 18h �s 6h como cuidadora em um abrigo de idosos e sabe bem como o Alzheimer pode causar esses momentos de atribula��o. Com seu marido, n�o era diferente.
Silvana tinha consulta m�dica �s 7h30 sua diabetes estava descontrolada - e trocou rapidamente a roupa de Z� para irem juntos.
Botou nele a cal�a jeans escura, uma blusa cinza de manga comprida, o t�nis azul e uma malha de l� por cima. "Z� � friorento."
Foram e voltaram r�pido. Em Cordeir�polis, cidade do interior paulista a 158 km da capital, tudo � relativamente perto.
Comeram o almo�o requentado, e o dia transcorreu normalmente, entre os cuidados com a enxuta casa de dois quartos, a vira-lata Luana e os 18 gatos que Silvana pegou para criar.
Por volta das 17h, Z� convocou a mulher: "Vamo, fia, vamo embora, vamo pra casa".
"Fio, faz quatro anos que a gente mora aqui, esta � a nossa casa", respondeu Silvana.
"Mas a Silvana n�o t� aqui", retrucou ele.
"Eu sou a Silvana, sua mulher", rebateu ela, na costumeira ladainha de faz�-lo se lembrar de sua exist�ncia.
"Silvana � magra, e voc� � gordinha", respondeu Z�.
A mulher deu ao marido o costumeiro rem�dio para dormir. Tomou tamb�m o seu calmante, indicado pelo m�dico naquele dia, j� que o estresse contribu�a para fazer desandar a diabetes.
Fechou o port�o da casa com o cadeado e tirou a chave. Trancou a porta da sala com outra chave, mas a deixou na fechadura, como sempre fazia.
J� no quarto, Z� n�o quis colocar o pijama. Andava de um lado para o outro, pegava o chinelo da mulher e o mostrava para ela. Abria e fechava a primeira gaveta da c�moda v�rias vezes.
Silvana capotou de sono, crente de que Z� se deitaria do seu lado. Eram 20 anos de conv�vio, os �ltimos tr�s com o Alzheimer entre eles. Seria mais uma noite assim.
�s 4h30, ela passou a m�o do lado direito do colch�o e n�o sentiu o marido.
Levantou correndo, chamando-o pela casa. Descobriu a porta da sala aberta e o port�o encostado, mas sem o cadeado.
Recordou-se dos �ltimos cuidados na noite anterior, e um flash de mem�ria lhe deu um frio na espinha: tinha deixado a chave do cadeado sobre a c�moda do quarto.
Ela encontrou a chave um pouco mais � frente, na cal�ada da rua onde moram.
O cadeado foi com o Z�, que, prestes a fazer 76 anos, n�o havia sido encontrado at� a publica��o desta reportagem.
Restou o boletim de ocorr�ncia feito por Silvana, no qual consta que "Jos� tem problemas de sa�de (Alzheimer)".
Ainda assim, Z� Pedreiro entrou para mais uma estat�stica "inexistente" no Brasil: a de pessoas com Alzheimer que se perdem e n�o voltam para casa.
Fugas frequentes

'N�o tranco o port�o porque sei que ele vai voltar', diz Silvana
Arquivo pessoal"Essas 'fugas' acontecem com certa frequ�ncia, mas n�o temos n�meros sobre esse assunto especificamente, � muito emp�rico, vem da nossa experi�ncia no dia-a-dia dos atendimentos", diz Aline Martins Grat�o, enfermeira e professora de Gerontologia na Universidade Federal de S�o Carlos (UFSCar).
Ela � uma das coordenadoras do iSupport-Brasil, plataforma do Minist�rio da Sa�de criada em conjunto pela UFSCar, a Universidade Federal de S�o Paulo (Unifesp) e a Universidade de Bras�lia (UnB).
A iniciativa auxilia o cuidador de pessoa com dem�ncia a entender a doen�a, lidar com os desafios da mudan�a de comportamento, prestar um bom cuidado e cuidar de si mesmo.
"Sabemos que os familiares usam as redes sociais para tentar localizar a pessoa que se perdeu. �s vezes d� certo, �s vezes n�o", diz Grat�o.
A Secretaria de Seguran�a P�blica de S�o Paulo informou, por meio de sua assessoria, n�o dispor de dados computados sobre desaparecidos que apresentem dem�ncia.
Em 2017, Ana L�cia Lopes Miranda, ent�o delegada na 4� Delegacia de Pessoas Desaparecidas, afirmou no site do governo do Estado de S�o Paulo que registrava, em m�dia, aproximadamente 80 desaparecimentos mensais de pessoas com idade acima de 65 anos e que o principal motivo era a desorienta��o decorrente de doen�as como o Alzheimer.
F�bio Porto, professor de Neurologia da Universidade S�o Camilo e diretor cient�fico da Associa��o Brasileira de Alzheimer (ABRAz) regional S�o Paulo, aponta que h� muitas pesquisas sobre a Doen�a de Alzheimer, mas n�o conhece nenhuma que contabilize aqueles que se perdem de casa em fun��o da doen�a, com ou sem volta ao lar no final.
Porto explica que, se no est�gio leve da doen�a h� problemas na mem�ria recente, a partir do est�gio moderado a falta de orienta��o e a busca por uma moradia do passado s�o sintomas cl�ssicos.
"Frequentemente acontece alguma desorienta��o no tempo e no espa�o, porque a pessoa n�o reconhece mais marcos que a orientam. Junte-se a isso a perambula��o, o andar a esmo sem raz�o espec�fica, e est� criada uma combina��o muito propensa para a pessoa se perder", diz Porto.
N�o raro essa perambula��o vem acompanhada de agita��o. "A gente sempre associa agita��o com agressividade f�sica ou verbal, mas um dos conceitos de agita��o � um aumento da atividade motora espont�nea", afirma.
Inquieta, a pessoa sai andando, perambulando, vagando.

Levantamento aponta que ao menos 1,76 milh�o de brasileiros com mais de 60 anos vivem com alguma forma de dem�ncia
Getty ImagesDe acordo com a Alzheimers Association, seis em cada dez pessoas com dem�ncia vai andar a esmo, confundir-se com sua localiza��o ou se perder de fato pelo menos uma vez, se n�o repetidamente.
Apesar de comum, o perambular pode botar a vida da pessoa em perigo, sem falar na ang�stia que o desaparecimento provoca nos cuidadores.
No �ltimo ano, Z� Pedreiro j� havia andado sem destino duas vezes por Cordeir�polis. Na primeira vez, com parte do dinheiro da aposentadoria em m�os, disse que iria comprar p�o doce na padaria.
Silvana pediu que ele esperasse at� que ela acabasse de lavar a roupa para irem juntos. Quando se deu conta, ele j� tinha sa�do.
O marido voltou para casa numa picape cujo motorista percebeu a desorienta��o. Na �poca, Z� soube dizer o pr�prio endere�o, ainda que j� bem distante de casa.
Na segunda vez, uma de suas filhas (Z� tem tr�s filhas e dois filhos do primeiro casamento) soube pela cunhada que ele estava vagando com a cachorra Luana na entrada do bairro Jardim Progresso, longe de casa.
"Na verdade, a Luana � quem carregava o Z�, porque ela estava amarrada ao c�s da cal�a dele", lembra Silvana.
O pedreiro se recusou a entrar no carro da mo�a com a Luana. Silvana teve de buscar os dois.
Da terceira vez, a do atual desaparecimento, um homem teria dado carona para Z�, a pedido dele, at� o vel�rio de Santa Gertrudes, cidade encostada em Cordeir�polis. Dali, a fam�lia n�o teve mais pista concreta de seu paradeiro.
Uma cachorra tamb�m foi personagem central do desaparecimento de outro idoso com Alzheimer, um morador de S�o Francisco do Par�, a cerca de 85 km de Bel�m.
Jonivaldo Nascimento Pereira, de 85 anos, se perdeu no dia 3 de fevereiro na Granja Marathon, que fica na zona rural.
A fam�lia procurou a pol�cia, fez boletim de ocorr�ncia e vasculhou a �rea por madrugadas frias at� que, seis dias depois, o latido de uma cachorra caramelo alertou sobre a presen�a dele no meio de um matagal.
Pereira estava bastante debilitado quando foi resgatado pelos bombeiros.
Nas redes socias, o filho Ediel Brito Stern agradecia aos vizinhos por deixarem seu conforto para estar ao lado da fam�lia, e requisitava a Deus que guardasse a cachorrinha, "usada pelo Esp�rito Santo como uma luz".
Sem bater de frente
O n�mero de pessoas atingidas por dem�ncias no Brasil, est� aumentando.
Segundo levantamento coordenado pela psiquiatra e epidemiologista Cleusa Ferri, da Unifesp, que ser� apresentado em setembro ao Minist�rio da Sa�de, ao menos 1,76 milh�o de brasileiros com mais de 60 anos vivem com alguma forma de dem�ncia.
A previs�o � que chegue a 2,78 milh�es no final desta d�cada e a 5,5 milh�es em 2050.
Mais de 70% delas n�o disp�em de diagn�stico, o que bloqueia um tratamento adequado para controlar altera��es de mem�ria, problemas cognitivos e mudan�as de comportamento que surgem � medida que a doen�a avan�a.
Descrita pela primeira vez em 1906 pelo psiquiatra e neuropatologista alem�o Alois Alzheimer, a Doen�a de Alzheimer � a mais conhecida das dem�ncias. Representa at� 70% dos casos em pa�ses desenvolvidos e algo entre 50% e 60% no Brasil.
� a partir desses n�meros que a ABRAz anuncia a sexta edi��o da Jornada Paulista de Alzheimer, que ser� realizada no dia 2 de setembro abrindo o Setembro Lil�s, m�s de conscientiza��o para a doen�a.
A Jornada ter� uma sala dedicada a profissionais de sa�de, familiares e cuidadores, com foco na organiza��o de ambientes para pessoas com dem�ncia pensando em conforto, harmonia e o m�ximo poss�vel de autonomia.
Aline Grat�o diz que ajuda muito os cuidadores de algu�m com Alzheimer o conhecimento sobre os est�gios da doen�a e sobre estrat�gias poss�veis para melhorar o conv�vio e garantir a seguran�a da pessoa.
"Muitas vezes o desconhecimento faz com o que o cuidador bata de frente, discuta, diga que a pessoa com Alzheimer insiste numa coisa de pirra�a, que quer maltratar a fam�lia, mas isso s� vai gerar mais agita��o para ambas as partes", diz.
Uma das orienta��es � mudar o foco, dizer que seria melhor tomar um banho ou comer algo antes, dar uma volta de carro e avisar depois que chegaram em casa.
Quanto � agita��o, sugere-se identificar o per�odo do dia em que isso costuma acontecer com mais frequ�ncia e planejar atividades e exerc�cios que possam reduzir a ansiedade.
Evitar lugares movimentados e com muitos est�mulos, como shoppings e grandes supermercados, tamb�m faz parte da preven��o.
Sobre a seguran�a, a pessoa com Alzheimer deve ter sempre algu�m vigilante por perto.
A Alzheimers Association indica ainda luzes noturnas pela casa, campainha sonora nas portas que anuncie a passagem por elas, r�tulos nas entradas de cada c�modo que expliquem sua finalidade e travas altas ou baixas nas portas, num n�vel fora da linha de vis�o da pessoa.
Outra dica primordial: esconder chaves, carteiras e agasalhos que possam desencadear a vontade de sair.
Vizinhan�a a par de tudo

Maria Auxiliadora com os pais, o marido e o filho. Ela cuidou dos pais com Alzheimer e, hoje, revive os cuidados com seu marido
Arquivo pessoalAvisar vizinhos e amigos sobre a situa��o � mais uma medida valiosa.
Quando tinha 79 anos, um ano depois de ser diagnosticado com a Alzheimer, Osvaldo Pimenta de Oliveira saiu de casa e desapareceu por algumas horas.
Foi encontrado por um amigo de seu filho perambulando pelo bairro onde a fam�lia sempre morou, na cidade paulista de Franca, a cerca de 344 km da capital.
"Foi algo que nos assustou, eu e meus irm�os n�o t�nhamos o conhecimento de que isso podia acontecer", diz Maria Auxiliadora de Oliveira Pereira, filha de Osvaldo.
A partir dali, tiraram seu acesso � chave de casa e se organizaram para que o pai e a m�e, Maria Divina de Oliveira, tamb�m diagnosticada com Alzheimer, fossem morar com Maria Auxiliadora algum tempo depois.
"N�o foi f�cil, porque meu pai insistia, normalmente ao entardecer, em voltar para casa", lembra ela.
Em 2019, ano da morte dos pais, o marido de Maria Auxiliadora, Silvino Gon�alves Pereira, ent�o com 68 anos, tamb�m passou a apresentar sinais de falta de mem�ria, como esquecer completamente onde havia estacionado o carro. Exames confirmaram as primeiras evid�ncias do Alzheimer.
"Hoje, ele depende completamente de mim para tomar banho, para se vestir, para colocar os alimentos no prato, porque ele confunde os alimentos", afirma Maria Auxiliadora.
Mesmo sob total vigil�ncia, Silvino teve um dia acesso � chave da porta principal de casa e foi encontrado pela sua mulher a v�rios quarteir�es de dist�ncia, parado em uma das esquinas da avenida em que fica o supermercado onde Maria tinha acabado de fazer compras.
Lista do passado
Diante da possibilidade de algum parente com Alzheimer se perder, a recomenda��o � que se tenha � m�o uma lista de lugares e pessoas do passado dessa pessoa potencialmente revisit�veis, como a casa da m�e, a igreja frequentada, o restaurante preferido, a manicure ou o barbeiro da vida toda.
Al�m disso, � bom pedir a vizinhos e amigos entrem em contato com a fam�lia caso vejam a pessoa vagando na rua est� na lista, assim como manter uma foto atual e em close � m�o, para entregar a pol�cia, se for o caso.
O GPS � outro recurso. Luciane Midory Sakuma e o irm�o, Rhenan, contrataram uma empresa para monitorar a m�e, Iracema Sizuko Gushi Sakuma, de 72 anos, diagnosticada h� 7 anos com a doen�a. O intuito era deixar Iracema independente, mas sob vigil�ncia.
Na bolsinha insepar�vel de dinheiro dela, colocaram uma carteira de identifica��o com seu nome, endere�o, o problema de sa�de e o contato de Luciane, tamb�m gravado no objeto.
"Cheguei a comprar uma correntinha com esses dados, mas ela a tirava na hora do banho e deixava pendurada no box", diz Luciane.
O melhor recurso, por�m, foi a rede de apoio da redondeza. "Meu tio avisou os vizinhos, os funcion�rios do supermercado, o pessoal da padaria, lugares por onde ela passava, para que, se a vissem vagando na rua, era para acompanh�-la at� em casa, mas isso felizmente nunca aconteceu."
O que aconteceu foi Iracema ter dado dinheiro a mais nas compras, mas, segundo a filha, as pessoas sempre devolviam o valor. "Ela sempre foi muito querida e carism�tica."

Luciane busca dar independ�ncia � m�e, mas sempre sob vigil�ncia cerrada
Arquivo pessoalAlerta prateado
Nos Estados Unidos, existe um sistema de notifica��o p�blico chamado Silver Alert (alerta prateado, em ingl�s), que transmite informa��es sobre idosos desaparecidos que tenham Alzheimer ou outra dem�ncia a fim de ajudar na localiza��o deles.
Modelado a partir do Amber Alert (alerta �mbar, em ingl�s), para o rapto de crian�a, o Silver Alert usa uma gama de meios de comunica��o, como esta��es de r�dio e de TV, afora mensagens nas estradas voltadas a motoristas, para alertar sobre a situa��o.
Cuidadores de idosos desaparecidos no Brasil se sentem, em geral, sem recursos quanto a isso.
Depois de fazer o boletim de ocorr�ncia, Silvana e filhas de Jos� Pereira do Nascimento fizeram cartazes que nem puderam afixar em rodovi�rias e pontos de �nibus de Cordeir�polis e cidades pr�ximas, porque n�o h� autoriza��o p�blica para isso.
Silvana cogitou contratar um funcion�rio que anuncia promo��es no supermercado para intercalar o pre�o dos produtos com o desaparecimento do marido. Trotes n�o faltaram, o que desgasta ainda mais a fam�lia.
"No pa�s, ainda n�o temos pol�ticas p�blicas voltadas �s dem�ncias", avalia Aline Grat�o.
"Se forem bem estabelecidas e aprovadas, a gente consegue tra�ar caminhos e unir for�as, inclusive em torno da seguran�a, mas os trabalhos que fazemos s�o ainda muito iniciais quando comparados aos pa�ses desenvolvidos."
Silvana manteve o ambiente do jeitinho que Jos� gostava. Tem consigo que "Deus vai abrir a mente dele", que ele vai lembrar que mora em Cordeir�polis e que sua mulher se chama Silvana ou Fia.
Tanto que nunca mais passou cadeado no port�o. "Ele vai voltar e entrar."
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