
A ocupa��o e conquista se deu do sert�o para o litoral. Da� a foca que, numa das pontas do mapa do pa�s, se desenha contorcida. Corpo longo e focinho estreito, como que afundado numa imensid�o de �gua doce que corta suavemente florestas de dunas transparentes, manguezais, igarap�s, entremeados por mais de sete dezenas de ilhas – quando n�o cobertas por matas e manguezais; de areias douradas – ref�gios de gar�as, macacos-pregos, guaribas, jacar�s, capivaras, celeiros de caranguejos e dos ninhais dos vermelhos guar�s.
Tanta �gua que brota do ponto mais alto do Piau�, na Chapada Mangabeiras, Parque Nacional das Nascentes do Parna�ba, rasgando o estado por 1.485 quil�metros, gesta pelo caminho de caatinga, agrestes, mata densa e cocais filhos afluentes como o Poti, o Gurgueia, Canind�, Uru�u�-Preto, Long� e das Balsas, al�m de uma imagin�ria fronteira com o Maranh�o. � o Rio Parna�ba, nos dizeres tupi-guarani “rio de �guas barrentas” ou “grande bra�o do mar”.

Imponente, j� ao final de seu curso, esgueira-se o Rio Parna�ba placidamente no grandioso santu�rio ecol�gico que cobre 2.700km2. Antes de desaparecer por completo engolido na imensid�o marinha, esse rio, que no Piau� marca a transi��o entre a caatinga do semi�rido e as terras �midas e florestas equatoriais do Norte amaz�nico, bifurca-se � foz formando os bra�os do Igara�u e do Santa Rosa, que por seu turno se multiplicam em igarap�s e canais. Abre-se em m�o espalmada, alcan�ando o oceano entre dedos esticados pelas barras de Tutoia, do Caju, do Igara�u, das Can�rias e da Melancieira.
Entre a baixa e alta mar�s, o Parna�ba e o Atl�ntico medem for�a. Desafiam-se. No vaiv�m do combate violento, as �guas se tornam salobras. At� que, por fim, sem condi��es de resist�ncia, o sert�o � tragado, perde-se no mar. Nas palavras do poeta piauiense Torquato Neto (1944-1972): “Adeus/ Vou pra n�o voltar/E onde quer que eu v�/Sei que vou sozinho/T�o sozinho amor/Nem � bom pensar/Que eu n�o volto mais/Desse meu caminho”.
Eis o Delta do Parna�ba, o �nico em mar aberto das Am�ricas, entre os tr�s maiores do mundo em extens�o e beleza natural, rivalizando-se com o Nilo, no Egito, e o Mekong, no Vietn�. Est� a meio caminho dos Len��is Maranhenses e a Praia de Jericoacoara, no Cear�, refer�ncia daquela que se convencionou chamar Rota das Emo��es, roteiro que integra os tr�s exuberantes destinos no trajeto que une o menor litoral do Brasil – os 66 quil�metros que abrem o Atl�ntico ao Piau�, um dia cedidos pelo Cear� – , aos outros dois estados nordestinos.
As tonalidades das paisagens c�nicas que emergem neste santu�rio mesclam-se entre o dourado de dunas, o verde de matas e manguezais, o c�u azul, o colorido vermelho dos guar�s – que diariamente persistem em revoadas ao p�r do sol at� a Ilha do Caju, em inspirador soneto de harmonia. Tal orquestra��o da natureza sensibilizou o desbravador Nicolau de Rezende, a quem � atribu�do o “descobrimento” do Piau�, que, em 1571, teria registrado: “As �guas s�o labirintos entre florestas intocadas e a vida acompanha o pulsar incessante das mar�s”. Nicolau de Rezende e seus companheiros de expedi��o sobreviveram a um naufr�gio no Delta do Parna�ba, salvos e acolhidos pelos �ndios trememb�s, habitantes naturais do territ�rio, ex�mios nadadores, chamados por tal motivo de “peixes racionais”. Viveram pacificamente com eles por pelo menos uma quinzena de anos, per�odo em que, absorvido pelo cen�rio, o desbravador se interrogou: “Este para�so resistir� aos futuros desbravadores?”.
Sim, o para�so, que chegou a ser alcan�ado por manchas de �leo ao fim do ano passado, resiste. Com a for�a n�o mais das tribos originais, dizimadas no violento processo de ocupa��o e coloniza��o do territ�rio. Mas no esp�rito preconizado pela figura ic�nica de Mandu Ladino, o �ndio Arani, que em 1712 comandou um espetacular “ex�rcito de liberta��o” – reunindo trememb�s, aranis, potis, cariris e carte�s, entre outras tribos at� ent�o inimigas do Piau�, Cear� e Maranh�o – em rebeli�o contra o massacre das for�as colonizadoras.
Manu Landino caiu em 1717, durante violento cerco ao Porto das Barcas, em Teresina. Sobrevive, contudo, n�o apenas na pra�a que leva o seu nome, em Parna�ba, mas nas a��es dos moradores e ribeirinhos que protegem e lutam pela preserva��o do Delta do Parna�ba.