“Tenho nojo de preto.” Foi isso que Natália Burza Gomes Dupin disse, em alto e bom som, a um casal negro na portaria do prédio onde mora, no centro de Belo Horizonte, no dia 28 de dezembro. Não foi cochicho, não foi mal-entendido, não foi deslize. Foi racismo escancarado. Mas esta não é a primeira vez que ela comete esse crime. Em 2019, um taxista perguntou se a mulher que acompanhava o pai idoso precisava de um carro. A resposta foi direta: ela disse que “não andava com preto”. Em seguida, cuspiu no pé do trabalhador e completou, sem qualquer constrangimento: “Eu não gosto de negro, sou racista, sou racista mesmo”.
Na ocasião, Natália chegou a ser detida, mas bastou pagar uma fiança de 10 mil reais para sair pela porta da frente. Sim, você leu certo. Diante de uma confissão pública de racismo, o agente de segurança pública optou por registrar o caso como injúria racial, crime que, naquele momento, ainda admitia fiança, quando o correto já era o enquadramento por racismo, que sempre foi inafiançável. Erro técnico? Não. Escolha.
É preciso explicar, de forma simples e objetiva, a diferença entre injúria racial e racismo, e por que, neste caso, a tipificação foi (e continua sendo) equivocada. A injúria racial ocorre quando alguém ofende uma pessoa específica, atingindo sua dignidade individual por meio de elementos ligados à raça, cor, etnia, religião ou origem. Já o racismo se configura quando a conduta atinge um grupo inteiro, promovendo discriminação, exclusão ou inferiorização coletiva. Aqui, o ataque não é apenas a uma pessoa, mas à humanidade de um grupo. Em resumo: "Injúria racial" é ofensa individual. "Racismo" é violência coletiva.
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Hoje, ambos são crimes imprescritíveis e inafiançáveis, porque integram o mesmo sistema de violência racial. A injúria racial passou a ser expressamente inafiançável em janeiro de 2023, com a Lei nº 14.532/2023. Mas isso não muda o ponto central: "as falas atribuídas a Natália sempre foram racismo".
Ao dizer, reiteradamente e em público, “tenho nojo de preto”, “não ando com negro” e “sou racista mesmo”, ela não atinge apenas a honra subjetiva de indivíduos específicos. Ela expressa repulsa, nega pertencimento social e reafirma a lógica de exclusão histórica da população negra. Trata-se de discurso de segregação, enquadrável na Lei nº 7.716/1989, que já previa o racismo como crime inafiançável. A escolha pela tipificação mais branda não revela ingenuidade jurídica. Revela a persistência de uma leitura que minimiza o racismo, transforma violência estrutural em mero conflito interpessoal e, assim, esvazia sua gravidade política e jurídica. Some-se a isso o fato de Natália ser filha de um ex-servidor da Polícia Civil de Minas Gerais, e a pergunta se impõe: quantos privilégios cabem dentro de um boletim de ocorrência?
Ela é reincidente no que talvez seja o crime mais “perfeito” do país: imprescritível, inafiançável no papel, mas frequentemente relativizado na prática. Um crime que sai pela porta da audiência de custódia, muitas vezes travestido de “problema psicológico”. Curiosamente, ninguém adoece quando rouba celular, trafica drogas ou armas. Mas, quando comete racismo, a família aparece com um laudo qualquer e a racista sai rindo da nossa cara.
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Se nos últimos dias assistimos Ludmilla, mulher negra, famosa, rica inconformada com o sistema de justiça porque foi chamada de “macaca” em 2017, em um programa ao vivo na televisão aberta, pelo apresentador Marcão do Povo, e ele não foi responsabilizado à altura, o que esperar desse mesmo sistema de Justiça quando o crime atinge negros anônimos? Pessoas comuns, apenas exercendo o direito de ir e vir, de trabalhar, de existir?
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O racismo no Brasil não falha. Quem falha, reiteradamente, é o sistema de justiça que insiste em prevaricar quando a violência racial não cabe no constrangimento da própria consciência.
