
Enzo, você está doente de resultados
Não há vergonha em ser pequeno diante do mundo; vergonha é fingir grandeza diante do nada
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Meu amigo Enzo,
Lá vem você novamente, citando palestras onde os oradores repetem a máxima de que é preciso “tirar leite de pedra”. Essa expressão, meu caro, é um monumento à insanidade moderna. Porque, veja bem: pedras não foram feitas para dar leite. Quando alguém te convence de que sim, o que está dizendo, no fundo, é que você deve ignorar os limites do real — essa fronteira incômoda onde moram a humildade e a verdade. Ou apenas está te chamando de burro iludido mesmo.
Há algo mais patético do que esperar “leite de pedra”? É o mesmo que esperar água potável da Pampulha, miado do cachorro, humildade em rede social, gentileza no trânsito às seis da tarde, eficiência em repartição pública na segunda-feira, silêncio em grupo de WhatsApp da família, sinceridade em reunião de condomínio ou intervenção alienígena com a lanterna do celular piscando na cabeça.
Essa ideologia da produtividade sem medida te quer exausto, Enzo. Quer que você acorde às 5h, medite em aplicativos, leia três livros por semana e poste frases sobre resiliência enquanto o corpo pede descanso e a alma implora silêncio. Querem transformar você em um híbrido: uma espécie de touro mecânico com a alma de um monge zen, equilibrado e furioso, sorrindo sempre enquanto se autoflagela em nome do desempenho. É o culto da impossibilidade travestido de superação.
Mas a pedra, Enzo, não está ali para te servir. A pedra está ali para te lembrar. Drummond, em sua clarividência mineira, a colocou no meio do caminho não como obstáculo, mas como testemunha. É o mundo dizendo: “Ei, você não é o centro do universo.” Cada tropeço é uma aula sobre proporção. A pedra marca o ponto em que a vontade esbarra no limite da matéria, onde o sonho precisa conversar com o chão. Ela não te desafia a extrair leite, mas a reconhecer a secura.
Albert Camus entendeu isso melhor do que todos os coaches de palco. O seu Sísifo empurra a pedra eternamente, não para vencê-la, mas para compreender-se nela. A rocha é o espelho da condição humana: repetitiva, absurda, mas inevitável. Sísifo não tira leite da pedra — ele a aceita. E, nessa aceitação lúcida, encontra uma forma de liberdade. Enquanto isso, o homem moderno, obcecado por resultados, continua achando que vai vencer a gravidade na base da mentalização positiva.
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Imaginar Sísifo feliz é o gesto mais radical de liberdade que a consciência humana pode ensaiar. Porque o sorriso que ele dirige à pedra não é de triunfo, mas de reconciliação. É o instante em que o absurdo e o homem se olham sem disfarces, e nenhum tenta enganar o outro com promessas de redenção. Sísifo sorri porque compreende que a pedra não é inimiga, mas companheira — é o corpo mineral da própria condição humana. Ao aceitá-la, ele abdica da esperança, e é justamente nessa renúncia que nasce a serenidade. O peso que antes o esmagava agora lhe dá forma; a repetição que antes parecia castigo torna-se ritmo; e o caminho sem fim revela-se espaço de consciência. Ser feliz, para Sísifo, é não precisar vencer para existir. É saber que, enquanto houver pedra, haverá também o gesto de empurrá-la — e nesse gesto, o eco silencioso da dignidade.
O perigo, Enzo, é que esse tipo de discurso transforma o impossível em dever moral. E aí, quando você falha (porque vai falhar, claro), a culpa é toda sua. “Você não acreditou o suficiente”, dizem. “Você não quis de verdade”, ou usarão a nova hipnose do momento: “Isso é uma crença limitante”. Como se a realidade fosse uma empresa de entrega sob demanda, e a existência, um e-commerce de milagres. A vida, vista por essa galera como um call center metafísico, é o lugar em que o fracasso é tratado como falta de foco, e não como parte essencial da experiência humana.
Querer tirar leite de pedra é a forma mais sofisticada de negar a finitude. É o mesmo delírio que faz gente trabalhar 14 horas por dia e chamar isso de propósito. A pedra é o lembrete de que há fronteiras — e que nelas mora a sabedoria. Não há vergonha em ser pequeno diante do mundo; vergonha é fingir grandeza diante do nada. A humildade de aceitar que certas pedras não se movem é mais revolucionária do que qualquer palestra sobre resiliência exponencial.
Então, da próxima vez que alguém te disser que “é preciso tirar leite de pedra”, oferece um copo vazio e diz que prefere aprender a olhar a pedra. Porque, no fundo, ela está ali para nos ensinar o ofício mais difícil que existe: o de ser incompleto sem se sentir fracassado. No reino das impossibilidades, a lucidez é o último gesto de sanidade.
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Grande abraço, meu amigo. Quando tiver um tempo, prorrogaremos essa conversa lá no Boteco do Chicão, lugar de encontro da Academia de Copos e Letras. Lá tem um líquido gelado que podemos tirar de alguns vasilhames bem mais belos que a pedra. E detalhe: barata e sem metanol.
Seu companheiro, filósofo da improdutividade
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.