
Livros humanos: páginas de carne e osso
Cada ser humano é uma narrativa viva, cheia de capítulos que ainda não lemos
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Outro dia estava a navegar despretensiosamente pela internet quando me deparei com a notícia de que na Dinamarca havia uma espécie de livraria na qual, ao invés de a pessoa escolher um livro, ela escolhia uma pessoa para escutar por 30 minutos. Em tempos de solidão e egoísmo, a ideia me pareceu grandiosa e me coloquei a procurar informações sobre o modelo, que, de fato, surgiu na Dinamarca nos anos 2000 e atualmente já está em quase 80 países, inclusive no Brasil, por iniciativas de universidades como as de São Paulo (USP) e de Brasília (UnB).
A proposta da Human Library é inverter a lógica da biblioteca tradicional e, ao invés de emprestar livros, permitir que pessoas “emprestem” suas histórias de vida para serem ouvidas por aqueles que desejam “ler” essas narrativas. As “leituras humanas” acontecem em um ambiente seguro e supervisionado e o “leitor” pode escolher diferentes histórias.
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O objetivo central do projeto é colocar, face a face, pessoas que não se encontrariam normalmente e, com isso, auxiliar na desconstrução de preconceitos, estigmas e divisões sociais, por meio do diálogo e da escuta. Outorga-se o status de “livro” a seres humanos que enfrentaram exclusão social, deficiências, transtornos mentais, violência, abrindo-se espaço para que compartilhem suas histórias e respondam as dúvidas dos “leitores”. A experiencia é voluntária para quem “empresta” sua história e há regras de confidencialidade, respeito e limites para o que será perguntado ou partilhado.
Paul Ricoeur afirmava que a vida só se torna legível quando ela é narrada, pois é exatamente a narrativa que dá forma ao tempo e permite ao sujeito compreender a si mesmo por meio de sua fala. Nesse sentido, a Human Library cumpre um duplo propósito: de um lado, ao se colocar como “livro humano”, a pessoa tem a oportunidade de contar sua história, mas também de organizar suas ideias e de se compreender melhor; porém, de outro lado, o “leitor”, ao ouvir, entra em contato com a alteridade de modo profundo, deslocando-se de si mesmo para se reconhecer no outro.
Não se trata de uma interação social rotineira de troca de informações entre duas pessoas, mas de um exercício de compreensão mútua, capaz de nos dar a esperança de vencer a fragmentação que nosso tempo produz. A Human Library nos aproxima da ideia óbvia, porém pouco difundida na prática, de que cada ser humano é único, repleto de capítulos que desconhecemos e que, necessariamente, ao nos aproximarmos, devemos ter cuidado.
Na pressa do cotidiano, muitas vezes reduzimos o outro rótulos, tal como o vizinho antipático, o colega de trabalho difícil ou o motorista apressado, e o que a Human Library pretende é desmontar essa lógica simplificadora ao transformar as histórias das pessoas em “livros”. O que antes era uma etiqueta simplista se transforma em capítulos de histórias realmente dignas de serem ouvidas, nos mostrando que todos carregamos nossas dores, alegrias e contradições, que não cabem em reduções apressadas.
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Talvez, o que mais tenha me chamado a atenção nesse projeto, tenha sido a alegoria de que todos nós somos narrativa e que quando de fato estamos dispostos a contar e a ouvir, podemos ter a chance de nos tornarmos coautores uns das histórias dos outros. Em tempos de solidão e de vozes sobrepostas, a Human Library mostra que a “leitura” de um ser humano pode ser um gesto transformador, tanto para quem “lê” quanto para quem “narra”.
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.