
Ziraldo, um dos maiores cartunistas do país
Autor de Flicts tinha 91 anos e deixa amplo legado. Em 2022, o Menino Maluquinho se tornou série de animação da Netflix
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Siga noMorreu neste sábado (6/4), aos 91 anos, Ziraldo, criador do Menino Maluquinho (1980), autor do clássico Flicts (1969) e de centenas de outras histórias e personagens que povoam o imaginário infantil há gerações.
Formado em direito, ele foi cartunista, chargista, escritor, pintor, dramaturgo, cronista, apresentador e humorista, entre outras atividades ao longo de mais de seis décadas de carreira. Sua saúde debilitou-se após três acidentes vasculares cerebrais sofridos a partir de 2018, quando passou a não dar mais entrevistas por recomendação médica.
Maurício de Souza sobre Ziraldo: 'perdi um irmão'
Em um vídeo gravado em 2019 para divulgação de uma exposição dedicada a ele, Ziraldo comentou que não estava triste, ao se desculpar pela voz um tanto abatida. Era a idade que havia chegado.
"Vocês podem achar que eu estou um pouco triste, falando devagar, porque não é meu estilo. Acontece que eu de repente fiquei velho. Foi outro dia. Eu acordei de manhã e estava velho", disse ele, vestindo um de seus indefectíveis coletes. "Mas eu estou alegre, estou feliz da vida."
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No mesmo ano, negou ele mesmo um boato de que teria morrido ao publicar uma foto em sua conta no Instagram, dizendo estar "firme e forte". Ao ser procurado por jornais para comentar o boato, disse estar "ocupado demais celebrando a vida".
De Caratinga para o mundo
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Ziraldo Alves Pinto nasceu em 24 de outubro de 1932 em Caratinga, Minas Gerais. Mais velho de sete irmãos, seu nome é a combinação dos nomes da mãe, Zizinha, com o do pai, Geraldo, como é comum no interior do Brasil.
O cartunista passou a infância em Caratinga, onde cedo revelou sua paixão pelo desenho e pela leitura, principalmente de revistas em quadrinhos. O menino Ziraldo, diz sua página oficial, desenhava em todos os lugares: na calçada, nas paredes, na sala de aula. Em 1939, com apenas 6 anos, viu seu primeiro desenho ser publicado no jornal Folha de Minas.
Adolescente, mudou-se com o avô para o Rio de Janeiro, onde viveu por dois anos. Retornou a Minas para terminar o curso científico (atual ensino médio) e, em 1957, formou-se em direito em Belo Horizonte. Nessa época, no entanto, sua carreira já estava totalmente voltada para o desenho.
Ziraldo começou a colaborar mensalmente com a revista Era uma Vez. Em 1954, passou a publicar uma página de humor na Folha de Minas, o mesmo jornal que havia veiculado seu primeiro desenho ainda criança. Ao terminar a faculdade, começou a publicar suas criações em revistas nacionais como O Cruzeiro, publicação dos Diários Associados, e no Jornal do Brasil, veículos que ficavam no Rio de Janeiro, onde voltou a morar.
Charge política
Se 1968 ficou conhecido como "o ano que não acabou", nas palavras do contemporâneo Zuenir Ventura, o de 1969 marcaria para sempre a carreira de Ziraldo. Em meio a prisões e perseguições, o artista foi contemplado com o principal prêmio do 32º Salão Internacional de Caricaturas de Bruxelas, considerado o Oscar do humor, depois de ter trabalhos publicados em revistas na Europa e Estados Unidos.
Foi também em 1969 que recebeu o Merghantealler, prêmio que homenageia o trabalho pela imprensa livre na América Latina dado pela Associação Internacional de Imprensa. Ziraldo ainda se tornaria o primeiro artista latino convidado a desenhar o cartaz da campanha anual do Unicef.
Antes do fim daquele ano, publicaria ainda seu primeiro livro infantil, Flicts. A história de uma cor que não encontrava seu lugar no mundo, contada como um poema gráfico, com o mínimo de palavras, encantou crianças e adultos. Dado de presente pela Embaixada dos Estados Unidos no Brasil aos astronautas americanos que fizeram parte da primeira expedição à lua na sua visita ao país, o livro comoveu Neil Armstrong, que escreveu ao autor: "A lua é Flicts".
O pai do "Menino Maluquinho"
Nas décadas seguintes, Ziraldo passaria a se dedicar mais a sua outra grande paixão, as histórias para crianças, que devorava desde menino em Caratinga. Em 1980, lançou O Menino Maluquinho, sucesso de vendas e ganhador do prêmio Jabuti, o principal das nossas letras.
O menino com uma panela na cabeça e sua capa e espada improvisadas se converteu num dos maiores fenômenos editoriais da literatura infantil, com mais de 4 milhões de exemplares vendidos até hoje e adaptações para o teatro, cinema, série de TV e até ópera.
Desde então, foram mais de 100 livros publicados como autor, colaborador ou ilustrador, e muitos outros best-sellers. Uma Professora Muito Maluquinha, de 1995, já vendeu mais de meio milhão de exemplares. O Bichinho da Maçã, de 1982, mais de 300 mil. As histórias de Ziraldo também chegaram a crianças do mundo todo, traduzidas em espanhol, italiano, inglês, alemão e francês, entre outras línguas.
Atuação política
Figura sempre ligada à esquerda, o artista foi membro do Partido Comunista Brasileiro. Em 2005, se filiou ao recém-criado Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), para o qual desenhou o logo. Nas eleições, declarou apoio público a candidatos do Partido dos Trabalhadores (PT), como nas duas vezes em que Dilma Rousseff ganhou a eleição e em 2018, quando Fernando Haddad ficou em segundo lugar.
Em 2008, Ziraldo e mais vinte jornalistas que foram perseguidos durante a ditadura, entre os quais o colega Jaguar, tiveram seu processo de indenização aprovado pela Comissão de Anistia do Ministério da Justiça. O cartunista foi indenizado em mais de R$ 1 milhão, além de receber uma pensão vitalícia de cerca de R$ 4 mil reais. Criticado por alguns colunistas na época, disse que o Brasil lhe devia indenização.Ao longo dos anos 1960, expandiu seus talentos como chargista, caricaturista e artista gráfico, criando cartazes para filmes hoje considerados clássicos do cinema nacional, como Os Cafajestes e Os Fuzis, de Ruy Guerra.
Foi também a época em que se consagrou com seus cartuns e charges políticas na revista O Cruzeiro e no Jornal do Brasil. Personagens como Jeremias, o Bom, a Supermãe e o Mineirinho tornaram-se populares.
Em paralelo, o artista realizava um antigo sonho de infância: se tornava o primeiro autor de uma revista em quadrinhos brasileira de um só criador, reunindo personagens da turma do Saci Pererê, importante personagem do folclore brasileiro, que já publicava nas páginas de O Cruzeiro.
Com personagens como uma criança indígena, e animais típicos da nossa fauna, como a onça, o jabuti e o tatu, a Turma do Pererê marcou época na história dos quadrinhos no país, apesar de ter circulado só até 1964. Em 1973, a editora carioca Primor reeditou uma seleção de suas melhores histórias, que passaram a fazer parte de vários livros didáticos.
Combate à ditadura e prisões
Durante a ditadura militar (1964-1985), Ziraldo continuou a publicar suas charges e cartuns políticos e, mais do que isso, tornou-se uma das grandes vozes da resistência ao autoritarismo e da defesa da democracia. Seu engajamento o levou a ser preso três vezes durante o período, a primeira delas em dezembro de 1968, apenas um dia após a decretação do Ato Institucional Número 5, o AI-5, que deu início ao momento mais duro do regime.
No ano seguinte, fundou junto com o colega Jaguar e os jornalistas Tarso de Castro e Sérgio Cabral O Pasquim, semanário de humor que virou um fenômeno editorial brasileiro ao se tornar o veículo da contracultura da época (abordando temas como sexo, drogas, feminismo e divórcio) e de oposição ao regime militar. O jornal foi também, na descrição de Ziraldo, o grande celeiro de humoristas do pós-1968.
No ano seguinte, ele e toda a equipe do jornal seriam presos, na primeira de muitas perseguições que O Pasquim sofreu. Até o fim da ditadura, houve ainda ataques a bomba à redação e a algumas bancas onde o jornal era vendido. "Ter podido atravessar os anos de chumbo fazendo o Pasquim foi uma dádiva. Morríamos de medo, mas fazíamos de tudo", disse Ziraldo à Folha de S.Paulo em 2007.
Na ocasião, o cartunista também comentou sobre sua tentativa de ressuscitar o jornal em 2002, como "O Pasquim 21". Apesar de ter durado até 2004, o projeto se somaria à lista de fiascos editoriais em que investiu, como as revistas "Palavra" e "Bundas", uma sátira ao sucesso da "Caras", em 1999. Depois dessas experiências, disse ter desistido do jornalismo. "Cansei de levar porrada. Eu sou o rei dos bons projetos e dos fracassos econômicos."
Reconhecimento internacional
"Eu quero que morra quem está me criticando. Porque é tudo cagão e não botou o dedo na seringa. Enquanto eu estava xingando o [ex-presidente João] Figueiredo e fazendo charge contra todo mundo, eles estavam servindo à ditadura e tomando cafezinho com o Golbery [do Couto e Silva, general chefe da Casa Civil no governo Geisel]. Então, qualquer crítica que se fizer em relação ao que está acontecendo conosco eu estou me lixando", disse na época ao jornal O Globo.
Dois anos depois, o cartunista, seu irmão, Zélio Alves Pinto, e outras dez pessoas foram condenadas pela Justiça Federal do Paraná por improbidade administrativa e registro indevido de marca durante a realização do Festival Internacional do Humor Gráfico das Cataratas do Iguaçu (Festhumor), em 2003.
Ziraldo foi condenado a dois anos, dois meses e 20 dias de reclusão, além do pagamento de multa. Mas o juiz trocou a prisão por prestação de serviço à comunidade ou entidades públicas, e o pagamento de um salário mínimo mensal pelo mesmo período da pena. "É uma dessas desgraças que acontecem na vida. Um sujeito com a minha biografia tem de enfrentar uma praga dessas", disse ele ao G1.
Legado
Ziraldo foi casado com Vilma Gontijo Alves Pinto, com quem teve os três filhos: a cenógrafa e cineasta Daniela Thomas, o músico e compositor Antônio Pinto e a também cineasta Fabrizia Alves Pinto, além de quatro netos. Desde 2002, estava casado com a produtora Márcia Martins.
Recluso nos últimos anos, o cartunista chegou aos 90 em 2022 cercado de homenagens à sua obra. O Menino Maluquinho se tornou série de animação da Netflix e dois de seus livros ganharam relançamento em edições especiais: O Bichinho da Maçã e Menina Nina.
Um livro-homenagem foi lançado pelo cartunista Edra, com 45 cartuns e 45 depoimentos de pessoas que foram influenciados por Ziraldo: 90 Maluquinhos por Ziraldo - Histórias e Causos.
Seus personagens e histórias também ganharam a exposição Mundo Zira – Ziraldo Interativo, que teve curadoria da filha Daniela Thomas em parceria com uma de suas sobrinhas, Adriana Lins.
"O Ziraldo afetou e moldou cinco gerações. Afetivamente e com relação a infância, todo Brasil cresceu junto com as criações do meu pai", disse Daniela durante o lançamento. "Não queremos deixar esse espírito morrer, ele envelheceu, claro. Mas a obra está muito viva."
Autor de best-sellers infanto-juvenis, Pedro Bandeira definiu Ziraldo à época como "um mestre, mas não imitável". "Ninguém pode ser Ziraldo. Quando ele ilustra, o livro inteiro cresce, explode e se magnifica".