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Estado de Minas MINEIRO

Ziraldo, 90 anos: a genialidade da obra do 'velhinho maluquinho'

Cartunista � autor de cl�ssicos que povoam o imagin�rio infantil, como 'O Menino Maluquinho', 'Flicts' e 'O Joelho Juvenal'.


24/10/2022 16:53 - atualizado 25/10/2022 11:46


Ziraldo
(foto: Marcelo Correa/ Divulga��o)

O Menino Maluquinho, Flicts,O Joelho Juvenal… S�o in�meras as cria��es de Ziraldo que n�o s� povoam o imagin�rio infantil por gera��es como t�m um reconhecimento acad�mico de grandeza e qualidade.

Para especialistas, ele j� � um cl�ssico e sua obra pertence ao primeiro escal�o do c�none cultural brasileiro.

Nascido em Caratinga (MG) h� exatos 90 anos, Ziraldo Alves Pinto est� recluso. Sua sa�de debilitou-se bastante depois de tr�s acidentes vasculares cerebrais sofrido de 2018 para c�.

De acordo com a fam�lia, por ordens m�dicas, ele n�o pode conceder entrevistas.

O que n�o impede que amigos e f�s celebrem seu anivers�rio com alegria e, principalmente, reconhecimento.

Neste m�s O Menino Maluquinho se tornou s�rie de anima��o do servi�o de streaming Netflix, h� o relan�amento, em edi��es especial, de duas de suas obras — O Bichinho da Ma�� e Menina Nina.

E ainda um livro-homenagem, preparado pelo cartunista Edra, com 45 cartuns e 45 depoimentos de pessoas que foram influenciados por Ziraldo: 90 Maluquinhos por Ziraldo - Hist�rias e Causos.

Em um dos seus mais recentes v�deos, gravado em 2019 para divulga��o de uma exposi��o dedicada a ele, Ziraldo comentou que n�o estava triste, ao se desculpar pela voz um tanto abatido. Era a idade que havia chegado.

"Voc�s podem achar que eu estou um pouco triste, falando devagar, porque n�o � meu estilo. Acontece que eu de repente fiquei velho. Foi outro dia. Eu acordei de manh� e estava velho", disse ele, vestindo um de seus indefect�veis coletes. "Mas eu estou alegre, estou feliz da vida."

Ziraldo virou "o Velhinho Maluquinho".

Em depoimento por escrito enviado � reportagem, o quadrinista Mauricio de Sousa, criador da Turma da M�nica comentou que "falar do Ziraldo � chover no molhado", j� que "todo mundo tem um grande carinho por ele e seus personagens".

Mauricio cita a obra de ambos para ressaltar que "nossa hist�ria se entrela�a junto com as crian�as e nossos personagens".


Cartum de Edra, em livro homenagem 90 anos
O cartunista Edra preparou um livro-homenagem para celebrar os 90 anos de Ziraldo (foto: Divulga��o)

"Ziraldo sempre diz que o mais importante � ler. Mas para que isso aconte�a, cada vez mais, � preciso ter autores como ele para arrebatar milh�es de crian�as leitoras", comenta ele, desejando "90 anos de sorrisos e muito mais" ao amigo e colega de profiss�o.

A cartunista Laerte define Ziraldo como "uma refer�ncia total, um mestre".

"Por todos os motivos poss�veis. Ele � algu�m que fez parte da forma��o de todos n�s, cartunistas e quadrinistas da gera��o seguinte, vamos dizer", comenta.

"E sempre foi uma pessoa muito dispon�vel: sempre nos recebeu, sempre nos ajudou, sempre nos apoiou e deu opini�o. � uma pessoa que sempre foi muito aberta."

Ela diz que Ziraldo � algu�m "que nunca se atrapalhou com nada, jamais teve qualquer empecilho como autor, como artista gr�fico, como pessoa absolutamente genial". "Ele presta aten��o aos detalhes em que � bom prestar aten��o. E ensinou a gente a prestar aten��o nessas coisas", afirma.

Renomado autor de best-sellers infantojuvenis, Pedro Bandeira acredita que "o talento, o patriotismo e a coragem de Ziraldo constru�ram um Brasil bem maior".

Bandeira diz que acompanha o trabalho do cartunista desde a sua pr�pria inf�ncia.

"At� tornar-me seu amigo, acompanho os talentos deste artista desde meus 10 anos, curtindo seus trabalhos como quadrinista, escritor, jornalista, caricaturista, ilustrador e, principalmente, como patriota. E olhe que, quando eu tinha 10 anos, Ziraldo tinha apenas 20 e j� era um quadrinista de primeira!", afirma.

"Logo, quando a ditadura arrasava e dentre seus ataques impunha-nos uma censura que me prejudicava especialmente, porque eu vivia do jornalismo e atuava como ator de teatro, Ziraldo publicou o mais lindo poema gr�fico da hist�ria do Brasil: Flicts, que veio para dar for�a aos injusti�ados, aos exilados, aos expropriados pelo fascismo brasileiro", acrescenta Bandeira, sobre o livro que conta a hist�ria de uma cor que n�o era aceita pelas outras.


Com Mauricio de Sousa em 2018
'Nossa hist�ria se entrela�a junto com as crian�as e nossos personagens', diz Mauricio de Sousa (foto: Jo Ribes/Divulga��o)

Segundo o escritor, em Flicts Ziraldo enxugou "nossa l�grima, ao dizer que, em algum lugar, talvez na Lua, ainda haveria esperan�a para nosso desespero".

"Quando eu lia o livro para meu filho, parecia ouvir a voz do Ziraldo: 'Calma, a arte um dia vencer� a injusti�a'. Eu entendi, Ziraldo. E h� de vencer novamente", diz.

Bandeira avalia que "Ziraldo � mestre, mas n�o � imit�vel".

"Ningu�m pode ser Ziraldo. Quando ele ilustra, o livro inteiro cresce, explode e se magnifica. Numa Bienal ou numa feira de livros, Ziraldo � cercado pelas crian�as e adultos que o leem como se fosse um Papai Noel distribuindo brinquedos", analisa.

"E ele aceita ficar por horas autografando para seus leitores, tirando fotos e fazendo caricaturas nos livrinhos."

"Todos n�s, escritores para crian�as e jovens, somos f�s do audit�rio do Ziraldo", acrescenta.

"Os textos de Ziraldo n�o t�m vil�es. Todos seus pequenos her�is, como o Menino Maluquinho, flutuam pelas hist�rias como se dan�assem em seus pr�prios sonhos. S� Ziraldo sabe como as crian�as sonham", comenta Bandeira.

O escritor comenta que desde a pandemia est� "enfurnado" mas que tem saudades de conviver com o amigo.

"Falamos por telefone, trocamos carinhos, mas nada consola minha vontade de ouvir novamente sua voz, ver seu sorriso quando acolhe algum leitorzinho de olhos arregalados de admira��o", diz.

"N�s, que o amamos, jamais poderemos oferecer tanto amor quanto ele j� espalhou pelo Brasil."

Presidente da Associa��o dos Cartunistas do Brasil, Jos� Alberto Lovetro, mais conhecido como JAL, define Ziraldo como algu�m que "tem o DNA da cultura brasileira".

"N�o s� por sua arte no humor gr�fico, mas tamb�m por criar personagens que invadem a vida das pessoas como se fossem da fam�lia de cada um. Agrada crian�as de at� 100 anos de idade", comenta.


Cartum de Angeli, que consta no livro comemorativo aos 90 anos
Entre os cartuns do livro comemorativo, est� este de Angeli (foto: Divulga��o)

JAL conta que quando era bastante jovem encantou-se pelo jornal 'O Pasquim', seman�rio alternativo que circulou durante a ditadura militar e que teve Ziraldo no time.

"Quando eu era ainda garoto j� era absorvido pelo Pasquim. De ameba fui descobrindo o que era pol�tica. E Ziraldo sabe conquistar a intelig�ncia das pessoas", recorda.

"Fiquei inebriado por aquela linguagem engra�ada e ao mesmo tempo cheia de estilo. Virei desenhista."

Trajet�ria de sucesso

Respons�vel pela publica��o da obra dele na Editora Melhoramentos, a editora Leila Bortolazzi avalia que trabalhar com ele "nunca foi muito complicado".

"Mas claro que, como todo artista compulsivo, obsessivo em atingir a perfei��o, ele costumava fazer v�rias revis�es em textos e ilustra��es", lembra ela.

"Tudo era muito bem cuidado, ia e voltava, sempre era assim."

Ela recorda que antes de o trabalho ser feito por meio de digitaliza��o, "era sempre um evento" quando, com a pastinha debaixo do bra�o, o autor ia pessoalmente at� a editora para levar seu trabalho e defender as ilustra��es.

"Quando chegava um livro novo dele era sempre uma novidade, porque ele sempre foi muito criativo, muito original, muito �nico. Acho que isso faz a obra dele ser t�o perene: a originalidade, a criatividade dele", comenta.

"Fica at� dif�cil comparar, n�o tem como falar 'tem influ�ncia disso e daquilo'. Ele � muito original mesmo, seu trabalho e seu tra�o � �nico e bem marcante."

Bortolazzi come�ou a trabalhar na Melhoramentos em 1981, ou seja, sua trajet�ria na empresa � praticamente t�o longa quanto o sucesso de Ziraldo no mundo dos livros — O Menino Maluquinho, seu maior sucesso, foi lan�ado em 1980; hoje acumula 18 edi��es, 135 reimpress�es e j� vendeu mais de 4,1 milh�es de exemplares.

Com mais de 200 livros publicados, Ziraldo tem diversos outros best-sellers. Uma Professora Muito Maluquinha, de 1995, j� vendeu mais de 500 mil exemplares. Menina Nina, de 2002, 140 mil. O Bichinho da Ma��, de 1982, mais de 300 mil. O Planeta Lil�s, de 1984, 200 mil. O Menino Quadradinho, de 1989, 120 mil. Flicts, de 1984, mais de meio milh�o de exemplares.

Ziraldo come�ou sua carreira em 1954 no jornal Folha da Manh� — hoje Folha de S. Paulo. Ele tinha uma coluna de humor. Depois passou pela revista O Cruzeiro e pelo Jornal do Brasil. Em 1960 lan�ou o primeiro gibi brasileiro feito por um s� autor, a Turma do Perer� — a publica��o acabou descontinuada a partir de 1964, por conta da ditadura militar.

Durante o regime autorit�rio, foi um dos idealizadores e parte integrante da equipe do seman�rio de contracultura O Pasquim, que fez sucesso e acabou marcando uma gera��o. Ele acabou sendo preso no dia seguinte a promulga��o do Ato Institucional N�mero 5, em dezembro de 1968.

Figura sempre ligada � esquerda, ele foi membro do Partido Comunista Brasileira. Em 2005 ele se filiou ao rec�m-criado Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e desenhou o logo da agremia��o. Nas �ltimas elei��es, declarou apoio a candidatos do Partido dos Trabalhadores (PT), como nas duas vezes em que Dilma Rousseff ganhou a elei��o e, na �ltima, quando Fernando Haddad ficou em segundo lugar.

Sucesso de cr�tica

Professora na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e autora do livro Articula��o Textual na Literatura Infantil e Juvenil, Leonor Werneck dos Santos considera "imposs�vel falar de literatura infantil brasileira sem falar de Ziraldo".

"Ele deu grande impulso � literatura infantil no Brasil, trouxe a literatura infantil para um lugar de destaque, inclusive academicamente", avalia.

Ela acredita que isso se deu por um conjunto de fatores, como a criatividade, a atualidade dos temas, a "linguagem que toca fundo no leitor de todas as idades, "o tra�o e o projeto gr�fico que parecem t�o simples mas s�o cuidadosamente pensados e dialogam com a proposta de cada livro".

"Tudo faz com que a obra ultrapasse a �poca em que � produzida. Por isso se torna um cl�ssico", afirma Santos.

Criadora do projeto Grandes Livrinhos, no Instagram (@grandeslivrinhos), a jornalista Giovana Franzolin acredita que s�o muitas as raz�es que fazem da obra de Ziraldo t�o importante para as crian�as — e resistentes ao tempo, conseguindo ter o mesmo peso hoje que tinha quando os sucessos foram criados, d�cadas atr�s.

"Entendo que isso acontece porque os personagens retratam uma inf�ncia atemporal, de crian�a arteira, feliz, com alegrias, dificuldades... n�o � t�o somente a inf�ncia dele pr�prio ou uma inf�ncia datada, tem um pouco da inf�ncia de todo mundo", comenta ela.

"Al�m disso, ele fala com a crian�a sem didatismo, sem ser moralizante, mesmo abordando temas mais 'cabeludos'. Ele consegue desenvolver qualquer tem�tica com leveza, sensibilidade e criatividade. Por exemplo, vejo que o Menino Maluquinho, o personagem mais emblem�tico e mais conhecido, � uma alegoria da inf�ncia, a crian�a sapeca e 'maluquinha', que n�o era nada mais que uma crian�a feliz."

Franzolin aponta algumas caracter�sticas do autor como fundamentais para definir sua genialidade. Primeiro, o pioneirismo, pois ele escreveu "para o universo da literatura infantil numa d�cada em que o mercado mal existia". E tamb�m pelo cuidado com os aspectos gr�ficos. Nesse sentido, ela ressalta que Flicts foi uma obra "disruptiva, ousada para a �poca".

"Al�m disso, pelo conjunto da obra. S�o dezenas e dezenas de t�tulos representando uma densidade impressionante para qualquer autor", aponta a jornalista.

"Mas mais do que tudo, creio que Ziraldo se consolidou por saber como nenhum outro representar a inf�ncia, com seus prazeres e agruras. Ele consegue represent�-la com seriedade e leveza, ao mesmo tempo em que n�o foge de temas mais dif�ceis ou tabus, como morte, separa��o dos pais, rejei��o... Ele toca a alma das crian�as e dialoga com elas como nenhum outro, no meu ponto de vista. E ao fazer isso, emociona tamb�m os adultos, reacende neles as mem�rias das pr�prias inf�ncias."

A jornalista comenta que Ziraldo, mesmo com 90 anos, "parece um eterno menino".

"Escreve com naturalidade, fala da inf�ncia sem esfor�o", diz.

"Interesso-me em especial pelo texto, me emociona toda vez que leio. Apresenta camadas de interpreta��o, de subjetividade, que captamos conforme a maturidade e o momento da vida."

Doutora pela Universidade de S�o Paulo (USP) e colaboradora da Funda��o Nacional do Livro Infantil e Juvenil, a professora de literatura V�nia Maria Resende diz que a "grandeza de Ziraldo est� na singularidade da linguagem pl�stica genial, vibrante, forte, exuberante". E, n�o s�. Tamb�m "na for�a da poesia e do humor em equil�brio", na "dimens�o l�dica que flui em sintonia com a naturalidade infantil".

"Acrescente-se a isso, o di�logo vers�til de seus livros com repert�rio de textos visuais, gr�ficos, verbais dos mais diferentes autores e fontes, n�o restritamente infantis, o que abre amplas perspectivas culturais para os leitores", diz ela, que � autora dos livros Ziraldo e o Livro para Crian�as e Jovens no Brasil e O Menino na Literatura Brasileira.

"Al�m da beleza visual que � fator de sedu��o est�tica, importante observar a riqueza simb�lica, at� mesmo de narrativas aparentemente mais simples, o que significa dizer que sua literatura n�o se reduz a mero entretenimento. Finalmente, destaco a grandeza do poder de comunica��o da obra do artista com leitores de diferentes idades, n�o apenas os infantis."

Resende acredita que "a concep��o peculiar de livro infantil de Ziraldo" � o seu maior legado. Esse conceito foi favorecido "por tra�os espec�ficos da sua forma��o de escritor-desenhista-artista gr�fico" e, ao mesmo tempo, compat�vel "com o pensamento complexo da contemporaneidade". Para ela, Flicts � o marco desse formato, afirmando-se com "a peculiaridade do estilo verbo-visual, de direcionamento de leitura simultane�sta, com apoio semi�tico, diferentemente da pura leitura lingu�stica."

Para a pesquisadora Monica Rebecca Ferrari Nunes, professora na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) e doutora em semi�tica pela Pontif�cia Universidade Cat�lica de S�o Paulo (PUC-SP), "Ziraldo trabalha com personagens que t�m universalidade". E isso explica a "for�a de seus personagens", de "forma que esses textos que ele constr�i s�o longevos na cultura".

"H� uma emo��o quase que universal que possibilita a perman�ncia atrav�s do tempo", comenta ela.

Nunes ainda ressalta a habilidade do autor na "hibridiza��o da linguagem".

"Ele faz a mistura de signos em que o verbal vai se misturando ao imag�tico, e o imag�tico ao verbal. E constr�i uma linguagem de alta complexidade que, ao mesmo tempo, tem um efeito muito r�pido na compreens�o", comenta ela.

- Este texto foi publicado originalmente em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63371610


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