LITERATURA

"Preferia que estivéssemos falando de Cidade Unida", diz Zuenir Ventura

Autor de "Cidade partida" relembra os 10 meses que passou em Vigário Geral para escrever o livro, cujo impacto é tema de "Cidade partida, 30 anos depois"

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Em um período de 10 meses, Zuenir Ventura foi três pessoas diferentes: o “burguês careca”, o “coroa responsa” e o “sangue bom”. Semanas após a chacina de Vigário Geral – 21 moradores foram executados por policiais militares, em 29 de agosto de 1993– o jornalista e escritor subiu o morro. Uma figura de linguagem, na verdade, pois a favela na Zona Norte do Rio de Janeiro é plana, dividida por dois muros altos.


Olhado com desconfiança pela comunidade traumatizada, Zuenir acabou ganhando a todos. Inclusive o “chefe do morro”, o traficante Flávio Negão, que lhe deu uma longa entrevista. Tal relato é um dos destaques de “Cidade partida”. Publicado em 1994, tornou-se uma obra de referência sobre a desigualdade social e a violência no Rio – e, por consequência, no Brasil.


Vencedor do Jabuti, o livro ganhou em 2024 edição especial pela Companhia das Letras. Inspirou também o lançamento de “Cidade partida, 30 anos depois” (Pallas Editora). Organizada pelos dois filhos de Zuenir – Elisa e Mauro Ventura – e Isabella Rosado Nunes, a obra reúne artigos e entrevistas.


O próprio Zuenir é um dos entrevistados de “Cidade partida, 30 anos depois”, que antecede o documentário homônimo, de Roberto Berliner e Luciano Vidigal, a ser lançado em breve pela TV Zero. Recém-chegado (em 1º de junho) aos 94 anos, o jornalista concedeu uma entrevista, por e-mail, ao Estado de Minas. “Preferia que, a essa altura, estivéssemos falando de Cidade Unida”.


“Cidade partida”, hoje, tem dois lados. Um é o da importância da obra, da discussão que ainda provoca. O outro é que todos os problemas apontados nos anos 1990 continuam presentes. Qual é o seu sentimento diante desse paradoxo?


Como jornalista e escritor, fico feliz que o livro não tenha ficado datado, não tenha perdido o frescor e continue estimulando debates e provocando discussões. Mas, como cidadão, lamento que muitas das questões citadas no livro continuem atuais, como a desigualdade social, a violência policial, a tirania do poder paralelo, a ausência do poder público nas favelas. A cidade continua com uma parte significativa dela sem acesso aos direitos básicos.


Acredito que o Zuenir que chegou a Vigário Geral era diferente do Zuenir que saiu de lá. O que você tirou da temporada de 10 meses na favela?


Costumo dizer que foi um choque emocional, cultural e térmico – porque a região é, de fato, muito quente. Era uma novidade para mim, e cheguei cheio de estereótipos. Vigário Geral era distante, uma coisa meio inacessível. Era outra cidade. Foi um mundo de revelações. Vigário Geral foi para mim um acontecimento, um impacto. Foi um momento muito emocionante da minha vida.


Um dos pontos altos do livro é sua entrevista com Flávio Negão. Considera esse um dos destaques de sua longa carreira jornalística?


Sem dúvida essa entrevista está entre as mais importantes que já fiz. Djalma, irmão de Flávio, era mecânico e não tinha ligação com o crime. Ele ajudou a fazer a ponte para eu entrevistá-lo. E como passei 10 meses em Vigário, acabei sendo conhecido na comunidade.

Na época do lançamento do livro, fui muito patrulhado por colegas jornalistas porque entrevistei um bandido. Fui criticado por outras pessoas também, porque achavam que eu estava dando voz ao criminoso. Era como se eu estivesse assumindo, legitimando e aplaudindo aquelas cenas. Dizia-se que era preciso manter distância dos traficantes. Hoje é natural entrevistar bandido.

Mas, naquele momento, não era uma coisa simples. Só que essa atitude de afastar o mal, de não querer saber, não adianta. Eu achava importante ouvi-lo porque queria conhecer a cabeça daquele jovem, que não tinha voz. Caio Ferraz se tornou sociólogo, líder comunitário, enquanto o outro virou chefe do tráfico. Cresceram no mesmo ambiente e foram para caminhos opostos.

Era um enigma que a gente não sabia como decifrar. Entrevistá-lo era uma forma de entender isso também. Era muito forte porque tudo que ele dizia era novidade para mim. Aquilo para mim era chocante, mas para ele era normal, ele assumia com naturalidade todos os crimes que cometera. Era um ser humano também, mas capaz de tamanha crueldade.

Então, foi uma experiência fundamental, mas muito dolorosa também, porque era um mergulho em outro mundo, em outra realidade, em outra cabeça. Não me arrependo de ter feito a entrevista. O mesmo choque que as pessoas tiveram ao ler o livro eu tive ao entrevistá-lo.

“CIDADE PARTIDA, 30 ANOS DEPOIS”

Organização de Elisa Ventura, Isabella Rosado Nunes e Mauro Ventura


Pallas Editora, Blooks Projetos e MINA Comunicação e Arte (258 págs.)


R$ 63.

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