Sá & Guarabyra se apresentaram em Belo Horizonte pela última vez como dupla no último sábado (12/7). O show, realizado no Grande Teatro Cemig Palácio das Artes, marcou o fim de uma jornada musical iniciada há 53 anos, quando ainda formavam um trio com Zé Rodrix (1947-2009). Agora, ambos seguirão carreira solo, com novos trabalhos autorais.
Leia Mais
Minas, cumpre dizer, sempre esteve no caminho dos dois músicos – Luiz Carlos Pereira de Sá é carioca, e Guttemberg Nery Guarabyra Filho nasceu em Barra do Rio Grande, na Bahia. Essa imbricação, porém, não é só geográfica, mas também poética. O sertão mineiro inspirou várias canções da dupla, e Belo Horizonte foi escolhida por Sá para morar.
“Belo Horizonte cometeu a audácia de me tornar cidadão honorário. Eu moro aqui há 20 anos e só saio arrastado por cavalos selvagens, como diria Mick Jagger”, brincou o carioca, referindo-se ao título concedido pela Câmara Municipal. “E o Guarabyra também vai virar cidadão de Belo Horizonte, porque ele não sai daqui. Vem para ficar um dia, mas sempre acaba adiando o retorno”, emendou.
O show da dupla não fez parte de uma turnê de despedida oficial. Trata-se de um espetáculo que já estava agendado antes de os dois anunciarem o fim da parceria, em abril passado. Via redes sociais, a dupla informou que a separação ocorreu por “causas naturais” e de forma espontânea, sem “questões discordantes”. Eles ainda farão mais um show, em Itajaí (SC), em setembro.
Teatro lotado
Sá & Guarabyra lotaram o Palácio das Artes. Para muitos da plateia, assistir aos dois foi um reencontro com a própria memória afetiva, marcada por canções que atravessaram gerações, amores e utopias. A dupla surgiu em um momento em que o Brasil vivia uma encruzilhada cultural: a ditadura ainda vigorava, mas havia um apetite crescente por liberdade criativa, críticas sociais (sutis ou nem tanto) e experimentações radicais.
Desde que lançaram os primeiros discos, “Passado, presente e futuro” (1972) e “Terra” (1973) – ainda com Zé Rodrix –, Sá & Guarabyra buscaram um estilo próprio, que unisse o lirismo do interior ao rock norte-americano. O resultado ficou conhecido como rock rural, um amálgama de folk, sertão, psicodelia e crítica social.
A dupla também transitou pelo samba e por baladas românticas, que foram as mais contempladas no repertório deste sábado.
Em tom minimalista, a apresentação destacou arranjos delicados, vozes bem cuidadas e o virtuosismo dos violões. Acompanhados por uma banda enxuta, os dois músicos mostraram ótimo entrosamento e mantiveram o bom humor durante toda a apresentação, contribuindo para a atmosfera afetiva que tomou conta da plateia.
O repertório privilegiou canções de tom confessional, que tratam de desilusões amorosas e da angústia de viver na estrada – temas recorrentes na discografia da dupla. A escolha por esse tom mais contemplativo combinou com a proposta do show, mas deixou de fora faixas mais ousadas e experimentais, presentes em álbuns importantes, como “Nunca” (1974), “Cadernos de viagem” (1975), “Pirão de peixe com pimenta” (1977) e “Quatro” (1979).
Melhores momentos
Entre os momentos mais marcantes estiveram “Caçador de mim”, composta por Sá e Sérgio Magrão e eternizada na voz de Milton Nascimento – aqui interpretada por Sá, em versão solo e inédita –, e “Esses cabides vazios (O cabo da vassoura)”, apresentada por Guarabyra com roupagem melancólica.
Outra surpresa foi “O bando da dança”, música nunca gravada pela dupla. “Numa dessas várias viagens que fizemos pelo Vale do Rio São Francisco, conheci dois velhos navegadores que ainda conduziam barcos à vela. Resolvi velejar com eles pelo caminho que faziam. Passamos por um lugar onde havia uma casinha branca, numa fazenda solitária. O José, um dos navegadores, viu aquilo e ficou diferente. Continuamos a viagem, eu perguntei: ‘Tem alguma coisa aí?’. Ele contou que, quando tinha uns 19 ou 20 anos, estava transportando uma carga. Quando chegou perto daquele lugar – o mesmo por onde passávamos – começou uma tempestade. Ele amarrou o barco na margem para esperar o tempo melhorar”, contou Guarabyra.
“A tempestade passou, mas já era tarde, e ele resolveu passar a noite ali. Quando acordou, estava cercado – metade do bando de Lampião o esperava. Ele tremia, claro. Mas os cangaceiros disseram: ‘Não se preocupe. Não vamos te fazer nada. Só queremos que você leve a gente a um lugar’. José levou o grupo até aquela casinha branca. Quando a noite caiu, o bando acendeu uma enorme fogueira e fez um grande baile. No dia seguinte, levaram o dinheiro para José, uma bela recompensa”, continuou, explicando versos como “Uma casa de repente surge na amplidão”, “Na varanda, no terreiro, no tremor do chão / Toca Volta Seca, volta Lampião” e “Dança que hoje a mão dos homens dorme desarmada”.
Nos momentos finais, o público ficou mais animado. Foi quando Sá & Guarabyra apresentaram “Espanhola” e “Sobradinho”, uma logo depois da outra. O espetáculo foi ovacionado e a dupla voltou ao palco para cantar “Dona” no bis. Mas, antes, brindaram os 53 anos que tocaram juntos com um generoso copo de chopp.