Em 2018, centenário do fim da Primeira Guerra Mundial, o romance de um escritor pouco conhecido apresentou nova abordagem para o conflito. Em “Irmão de alma”, David Diop acompanhou dois soldados senegaleses nas trincheiras. A carência de informações sobre os africanos que lutaram (e morreram) pela França motivou o livro.

A obra de Diop, de 59 anos, acadêmico franco-senegalês nascido em Paris e criado no Senegal, causou um impacto tremendo. Primeiramente na França e, mais tarde, em todo o mundo. “Irmão de alma” se tornou, em 2021, o primeiro livro de autor francês e de ascendência africana a vencer o prêmio International Booker.

O livro chegou ao Brasil em 2020, pela editora Nós. No ano seguinte, o escritor participou da edição virtual da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip). Agora está no Brasil. Termina nesta segunda-feira (21/7), em Belo Horizonte, no Teatro João Ceschiatti, uma série de encontros com autores brasileiros – entre eles, Conceição Evaristo e Itamar Vieira Jr. Esta noite, Diop conversa sobre “Ancestralidade poética” com o mineiro Ricardo Aleixo, a convite do projeto Sempre um Papo.

Com o segundo livro (seu terceiro romance) também editado no país, “A porta da viagem sem retorno” (2021), Diop traz novamente à tona histórias não contadas sobre o passado colonial e as feridas da guerra. A partir da viagem do naturalista francês Michel Adanson ao Senegal, ele trata do tráfico de pessoas escravizadas e suas consequências.

Professor de literatura do século 18 na Universidade de Pau et des Pays de l’Adour, no Sudoeste da França, Diop, nesta entrevista ao Estado de Minas, fala sobre sua abordagem sobre a África na literatura. “Os preconceitos são monolíticos, e os romances podem levar os leitores a questioná-los”, diz.

Sua ficção e sua pesquisa acadêmica são atividades complementares?

Sim, são. Utilizo o mesmo método para trabalhar em minha pesquisa científica e me preparar para escrever um romance. A diferença é que, para o romance, me distancio das fontes. Elas estão lá como pano de fundo.

Que impacto o International Booker Prize trouxe para sua carreira? Em nível pessoal, como ele o afetou?

Teve um impacto tremendo. Tenho a sorte de ter leitores em todo o mundo. Mas minha escrita não foi afetada, pois tenho experiência. Aprendi a viver antes de escrever.

“A porta da viagem sem retorno” destaca seu interesse pelas representações da África nas narrativas do século 18. Qual a importância de abordar este assunto em termos literários?

A literatura, o romance em particular, tem a extraordinária vantagem de ser capaz de refletir a complexidade do ser humano. Os preconceitos são monolíticos, e os romances podem levar os leitores a questioná-los, descobrindo os sentimentos sutis de personagens que, de outra forma, poderiam parecer incompreensíveis ou detestáveis.

Quais personagens deste livro são baseados em pessoas reais?

Michel Adanson é um botânico francês que foi ao Senegal em 1749, aos 23 anos, e aprendeu wolof (língua nativa do povo de mesmo nome, a mais falada naquele país) para poder falar diretamente com as mulheres e os homens locais que conheciam as propriedades das plantas. Usei seus manuscritos, preservados no Museu de História Natural de Paris, para escrever meu romance.

Os livros que escreveu contribuíram para ampliar o debate na França sobre as repercussões do passado colonial?

Para ser sincero, não sei. Mas é verdade que uma série de autores de origem africana que escrevem sobre o período colonial estão trazendo à tona questões que há muito eram ignoradas.

É possível dissociar a produção literária dos gestos políticos?

Sim, a literatura tem uma arma que, infelizmente, muitas vezes falta à política. É a arma da sutileza e do longo prazo. A política está sempre presa à urgência e à controvérsia, o que não conduz a uma reflexão mais aprofundada. 

Sempre um papo

David Diop e Ricardo Aleixo conversam sobre “Ancestralidade poética”. Nesta segunda-feira (21/7), às 19h30, no Teatro João Ceschiatti do Palácio das Artes (Avenida Afonso Pena, 1.537, Centro). Entrada franca.

Autógrafos

Hoje à noite, David Diop vai autografar seus dois romances publicados pela editora Nós. Sobre “Irmão de alma”, o mineiro Edimilson de Almeida Pereira destacou na orelha: “É um romance notável porque Diop infiltra o olhar da literatura nas frestas dos eventos parcialmente elucidados pela investigação histórica e sociológica.”

Siga nosso canal no WhatsApp e receba notícias relevantes para o seu dia 

Pereira afirma que ler “A porta da viagem sem retorno” é “reencontrar convergências entre o continente africano e o território da diáspora”, a exemplo da epígrafe de “Viva o povo brasileiro”, de João Ubaldo Ribeiro: “O segredo da verdade é o seguinte: não existem fatos, só existem histórias”.

compartilhe