Ela tem a inquietação filosófica da Mafalda e o humor sutil de “As Cobras”, do Luís Fernando Veríssimo. Mas carrega um quê dadaísta por ter uma janela aberta no lugar do rosto. Estamos falando de Eduarda, ou simplesmente Dadá, personagem que o roteirista e cartunista carioca Victor Klier criou, em 2006, como exercício pessoal e que agora vem ao mundo como protagonista do livro de tiras “Dadá – Janelas abertas”, lançado recentemente de maneira independente.
Dadá tem 12 anos. Dona de personalidade forte, ela questiona, provoca e estimula reflexões que transitam entre o existencialismo, o lirismo e o absurdo.
Leia Mais
A janela aberta no lugar do rosto é metáfora da ideia de tábula rasa, desenvolvida pelo iluminista John Locke, segundo a qual a mente humana nasce como uma folha em branco. Ao contrário da filha, os pais de Dadá têm rostos fechados em si mesmos. O pai traz uma porta semicerrada – referência às “portas da percepção” – que revela sua insegurança e resistência ao novo. Já a mãe carrega gavetas no rosto, numa alusão ao conceito de Salvador Dalí de que os espaços da memória misturam e acumulam todas as informações absorvidas pelo indivíduo. É, portanto, Dadá quem escancara tais gavetas e porta com perguntas incômodas, mas pertinentes.
“Eu queria criar uma personagem com traços infantis. Alguém que, à primeira vista, parecesse feita para as crianças, mas que fosse mais profundo”, conta Victor. Para dar mais densidade à personagem, ele se inspirou em Quino, criador da Mafalda, Luís Fernando Veríssimo e em Ziraldo (1932-2024). “Mas não foram os quadrinhos dele que serviram de referência para mim. Foram os livros, desde ‘Flicts’ até ‘O Menino Maluquinho’”, acrescenta.
.
PARCERIA DE SUCESSO
Além de admirar Ziraldo, Victor trabalhou com o cartunista por cerca de 30 anos – isso, inclusive, foi um dos motivos para que Dadá demorasse quase 20 anos para ser publicada. Tudo começou quando o jovem estudante do ensino médio foi até o apartamento do já consagrado Ziraldo para pedir um emprego de roteirista. Victor foi recebido, ganhou livros autografados e saiu com o conselho de que procurasse o autor de “O Menino Maluquinho” depois de terminar a escola.
Trato feito. O garoto se formou no colégio, entrou para a faculdade de jornalismo e, no meio do curso, foi até o estúdio que Ziraldo mantinha na capital carioca. “Ele era bem doido… Me deu um bloco, pediu para eu fazer um roteiro, me largou numa mesa e foi embora pra casa. Eu não conhecia ninguém ali, comecei a trabalhar, fiz o roteiro e fui embora. Demorou um pouquinho para ele me retornar”, lembra, em tom bem-humorado.
Trabalhando com Ziraldo, Victor criou as personagens Renatinha, Pagu e Simone. A primeira era uma versão moderna de Julieta, da turma do Menino Maluquinho; Pagu foi inspirada na poetisa de mesmo nome e Simone, em Nina Simone. As referências eram uma tentativa de fazer com que os gibis não se limitassem ao apelo comercial, já que “não é possível ganhar dinheiro com HQs, e sim com o licenciamento da marca”, conforme ressalta o roteirista.
Involuntariamente, Victor começou a desenvolver algo que passaria a ser uma de suas principais características: colocar personagens femininas como protagonistas. Foi nesse período que começou a rascunhar Dadá. Sem muitas pretensões, rabiscava janelas, gavetas e portas, e as colocava no lugar do rosto de figuras humanas. Mas parava por aí. Deixava a garotinha de lado quando surgia alguma demanda de Ziraldo.
O MUNDO DE SOFIA
O desenvolvimento de Dadá foi retomado com mais força a partir de 2016 e se intensificou durante a pandemia. A personagem foi ganhando forma, inspirada em uma amiga mineira de Victor chamada Ana Sofia. O nome, no entanto, precisou ser alterado para que ninguém a confundisse com a protagonista do clássico “O mundo de Sofia”, de Jostein Gaarder.
Victor não chegou a publicar as tirinhas de Dadá, mas, em 2007, enviou os desenhos para uma amiga de Ana Sofia que dava aulas de filosofia numa escola de Pedralva (MG). A professora, Renata Campanha, desde então usa as histórias de Dadá em sala de aula como suporte para a base teórica.
O principal objetivo de “Janelas abertas”, de acordo com o roteirista, é atingir o público adulto no intuito de mudar a percepção equivocada de que histórias em quadrinhos são apenas para crianças. “Aqui no Brasil, com o enorme sucesso da ‘Turma da Mônica’, muita gente acha que as HQs são só nessa linha. Outro dia, o ator João Vicente de Castro disse num programa de TV que os adultos estão infantilizados porque leem muita HQ. Eu concordo que os adultos estão infantilizados, mas não é por causa dos quadrinhos”, protesta Victor.
“Existe uma ramificação muito grande nesse universo. Tem histórias de super-heróis, adaptações de clássicos da literatura, tirinhas, histórias originais, entre tantas outras coisas. Na Europa, principalmente na França, as pessoas têm uma visão bem diferente. Lá a HQ é um gênero literário como qualquer outro, consumido por pessoas de todas as idades. É o que eu queria que acontecesse aqui no Brasil”, conclui.
Siga nosso canal no WhatsApp e receba notícias relevantes para o seu dia
“DADÁ – JANELAS ABERTAS”
• De Victor Klier
• Publicação independente
• 98 páginas
•R$ 55 (livro físico), à venda nos sites da Amazon e da Casas Bahia