Escritores discutem uso de inteligência artificial na literatura
Em debate paralelo à programação oficial da Flip, Sérgio Rodrigues afirmou que ferramenta poderá ser "o maior trator já passado sobre a espécie humana"
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"Num mundo em que algoritmos digerem montanhas de textos e regurgitam parágrafos sem espinhas, o papel do escritor talvez seja lembrar que a arte da língua reside justamente no desvio, no artifício humano. De que vale uma prosa que não tropeça no próprio rabo, que não saboreia a origem de uma palavra, que não se permite brincar com o risco de vida da expressão 'risco de vida'?"
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Quem escreveu isso aí foi e não foi Sérgio Rodrigues. O autor de vários livros, entre eles o recém-lançado "Escrever é humano" (Companhia das Letras), teve suas palavras emuladas por uma inteligência artificial a pedido de Rodrigo Tavares, professor da lusitana Nova School of Business and Economics.
A dupla debateu o futuro da literatura na era da inteligência artificial, num papo mediado pela jornalista Victoria Damasceno, na Casa Folha, na última sexta (1º/8), como parte da programação paralela da Flip.
Tavares está dando aula sobre o tema, justamente por temê-lo e se sentir ignorante sobre ele, disse. Contou ter encomendado a agentes artificiais um relatório analisando o estilo de escrita de Sérgio Rodrigues.
A máquina vasculhou tudo do brasileiro, de colunas publicadas na “Folha de S.Paulo” a aparições no programa “Conversa com Bial”. Detectou cadência narrativa, gosto por metáforas futebolísticas, o uso estratégico de perguntas retóricas. Tavares brincou que agora é "proprietário do espírito do Sérgio Rodrigues".
Pedante e monocórdio
Rodrigues disse que achou o resultado um pouco pedante, monocórdio, mas "nada mal". Sobretudo assustador. "Pode ser que algum dia a IA escreva um romance bom o bastante simulando Faulkner que nosso olhar de leitor não saiba distinguir."
Essa revolução tecnológica impacta na juventude nativa digital. "Escrever para as novas gerações é muito fácil. Difícil é ser lido por elas." A provocação de Rodrigues não foi a única durante o encontro.
Ele fez uma defesa do que chamou de "partido da escrita humana". Para o autor, insistir na palavra escrita por carne e osso virou, antes de tudo, um posicionamento político. "Vai exigir uma grande dose de força de vontade continuar apegado a uma escrita exclusivamente humana", disse.
Se a IA veio para ficar, o que nos resta? Negociar, responde Rodrigues. Até porque "se a gente não abrir o olho e não tomar muito cuidado, vai ser o maior trator já passado sobre a espécie humana em toda a história".
A questão, para ambos, é menos se a máquina pode escrever e mais quem lerá. Victoria Damasceno, a mediadora, trouxe a inquietação de uma turma que já nasceu sob o frenesi digital. "É uma geração acostumada com dopamina rápida, algo que nem sempre a literatura vai entregar."
Para Tavares, o futuro terá livros "orgânicos", feitos à mão. "Talvez daqui a alguns anos nós entremos na livraria aqui da Flip e tenha uma prateleira com aqueles livros que são escritos por seres humanos. E são artigos de coleção, são caros, é uma mala Louis Vuitton com pele de crocodilo feita por artesãos no Sul da Itália. Esse vai ser o livro."
Outra possibilidade serão obras feitas sob medida por IA para um único leitor. "Você terá uma conversa pessoal com Camões, ou um texto que só você pode ler."